O copo a encher

Estudos Portugueses na República Checa

Para quem está de fora, o copo pode estar ou meio cheio ou meio vazio. Mas, para quem está por dentro, ele tem vindo claramente a encher. Anualmente, na República Checa, cerca de uma vintena de estudantes ingressa nos cursos de Estudos Portugueses nas universidades de Praga (a capital) e Brno (a segunda cidade). E, no ano lectivo de 2007/08, mais de meia centena de jovens procuraram a licenciatura em Português na Universidade de Olomouc, no leste do país, o terceiro estabelecimento de ensino a oferecer Estudos Portugueses a nível superior.

Número 130   ·   24 de Setembro de 2008   ·   Suplemento do JL n.º 991, ano XXVIII

Números avançados pelo responsável pelo Centro de Língua Portuguesa do Instituto Camões (CLP/IC) na Universidade Carlos IV de Praga, Joaquim Ramos, que os classifica como «interessantes». Ao todo, são cerca de 231 alunos de Estudos Portugueses (licenciatura, mestrado e doutoramento) espalhados por aquelas duas universidades, a que se somam mais uma trintena nas universidades de Hradec Kralové, na cidade do mesmo nome situada no norte do país, Ostrava e Boémia Ocidental (Pilsen), que cursam Português como opção curricular em instituições que gozam do apoio pedagógico e científico do IC.

Praga
Praga, Relógio Astronómico da Praça Velha
«A procura pelo estudo da Língua Portuguesa (LP) tem sentido um aumento significativo na República Checa», tanto a nível graduado como pós-graduado (licenciaturas e mestrados), afirma Joaquim Ramos, que acumula o CLP/IC com as funções de leitor nas universidades de Praga, Brno e Olomouc, onde este licenciado em Direito com estudos complementares em Linguística ensina Estilística da LP e Cultura e Civilização Portuguesa.

Aqueles números não incluem os alunos que aprendem LP (opcionalmente) nas escolas Superior de Economia de Praga (10 alunos esperados em 2008/09), de Hotelaria de Praga (12 alunos) e Média e Superior Especializada de Praga 7 (20 alunos esperados em 2008/09). «Em franco desenvolvimento», acrescenta Joaquim Ramos, estão também os cursos de LP que não conferem um grau académico.

 

Pragmatismo

Este aumento da procura, que tem obrigado o corpo docente dos Estudos Portugueses «a um esforço redobrado para garantir uma resposta em qualidade ao inesperado número de alunos» e que representa uma pressão acrescida sobre os recursos disponíveis, agravada no caso do CLP/IC pela desvalorização do euro face à coroa checa, tem diversas razões. Alguns alunos «chegam por ‘acidente\'», diz Joaquim Ramos. «Procuravam uma segunda língua românica para complementar o seu curriculum e escolheram a língua de Camões um pouco às cegas». Outros porque tiveram algum tipo de contacto com Portugal, nomeadamente estudando um período no país. Outros ainda porque o Português lhes dá «acesso a um mercado turístico emergente, dirigido especialmente a portugueses e brasileiros», que visitam Praga em cada vez maior número. «Ser guia turístico é, aliás, uma das principais actividades dos alunos de níveis mais avançados durante as férias escolares».

Com efeito, se «interessa alargar o número de falantes de Português», «é também importante que essa aprendizagem» envolva a vida profissional futura dos aprendentes; por isso, «há escolas e cursos mais vocacionados para a LP técnica - aplicada à Economia ou às Relações Internacionais, por exemplo -, outros mais virados para a língua numa perspectiva pragmática, outros para a tradução, para a filologia e investigação científica linguística ou literária», explica Joaquim Ramos.

Aliás, para que os licenciados possam entrar no mundo do trabalho sem perderem contacto com a LP, o CLP/IC de Praga «possui um plano de estágios profissionalizantes para alunos finalistas ou recém-licenciados em filologia portuguesa, que os encaminha para uma de 3 áreas possíveis: ensino, animação de espaços/bibliotecas, dinamização e gestão cultural» refere Joaquim Ramos. «Na verdade», acrescenta, «muitos deles acabam por manter este contacto quer em empresas multinacionais com negócios em Portugal, Brasil ou África luso-falante, quer em representações diplomáticas, quer ainda como professores em escolas de línguas ou como guias turísticos».

A resposta a este tipo de preocupações pragmáticas está patente noutras disciplinas e cursos em que o responsável do IC intervém. Integrado no plano de licenciatura, Joaquim Ramos ministra a disciplina de Português Institucional e Político na Universidade Carlos IV. No ano lectivo passado leccionou Português Económico na Universidade de Brno. Mas o CLP/IC também tem vindo a oferecer «cursos originais», de que são exemplos o curso de Actualização para Guias Turísticos em Língua Portuguesa, o curso de História da Arte Portuguesa e Brasileira, ou os cursos de conversação.

 

Mariza, Saramago e Lobo Antunes

Procurar apresentar uma «concepção contemporânea do país» tem sido a linha seguida por Joaquim Ramos na leccionação das disciplinas de Cultura e Civilização Portuguesa nas universidades de Brno e Olomouc. Uma «orientação estratégica» aliás seguida pelo IC para o ensino da Cultura no estrangeiro que ao responsável do CLP/IC de Praga parece de «enorme pertinência». A História é importante - «um povo não o é verdadeiramente sem património, isto é, sem memória de si mesmo», diz -, «mas fazia falta olhar para o presente e levar os alunos a ver o Portugal do século XXI, com um papel - que efectivamente ocupa - na comunidade internacional seja a nível político seja a nível artístico e cultural, este último aspecto, infelizmente, demasiado arredado dos meios de comunicação de massas».

Praga
Praga, Vista da Torre do Relógio
A «boa impressão» que a generalidade dos checos tem de Portugal, «a imagem de progresso e de modernidade», não os impede de considerarem o país como um dos «menos desenvolvidos da Europa», reconhece Joaquim Ramos.

Portugal surge como um destino turístico nos jornais e revistas generalistas de grande circulação, mas fazendo jus ao elevado nível cultural e profissional dos checos, personalidades como Luís Figo e Cristiano Ronaldo «não são necessariamente os nomes que mais depressa vêm à cabeça de quem frequenta o meio académico», afirma o docente português, que refere aliás ser o hóquei no gelo mais importante do que o futebol por estas paragens. «Por aqui, Mariza, Saramago e Lobo Antunes emergem mais depressa quando estamos em conversa informal com checos; Durão Barroso é conhecido e reconhecido, embora haja muitos euro-cépticos na República Checa, e autores como José Luís Peixoto e Francisco José Viegas começam a ser traduzidos. Com bastante elevação no pódio (ainda que sem forma de gente) surgem também o Vinho do Porto e a azulejaria nacional.»

O responsável do CLP/IC de Praga afirma que há um público formado que «conhece e acolhe a produção cultural nacional», mas admite que «é campo que ainda está muito por explorar». «Acções como a ‘Quadrienal de Praga\' ou a ‘Feira do Livro de Praga\' têm contribuído para a divulgação do panorama cultural» português, embora Joaquim Ramos considere que um melhor conhecimento dos níveis educacionais - o ensino superior público é gratuito na República Checa, atraindo inclusive estudantes dos países vizinhos - e das sensibilidades culturais dos checos antes da elaboração dos projectos expositivos «poderia levar a resultados ainda melhores», dando como exemplo a seguir a feira de design de Brno, «onde Portugal tem vindo a conquistar prémios com uma invejável regularidade», e que «resulta de uma mobilização de investimento privado complementado por um apoio estatal estrategicamente orientado».

 

Uma biblioteca mais avançada que um estádio

O próprio CLP/IC de Praga tem a sua agenda cultural, «composta por actividades diversas, desde o teatro ao cinema, passando por leituras de poesia nos parques da cidade, exposições e concertos», bem como um plano anual de actividades, «em que se incluem projectos de tradução e edição de obras de autores consagrados portugueses, participação em festivais de grande prestígio, designadamente ao nível das performances de rua, música, cinema documental ou de animação, etc.», refere Joaquim Ramos. A recente adesão do CLP/IC ao EUNIC-Praga, que congrega os institutos culturais dos países da UE, como o British Council, a Alliance Française ou o Instituto Cervantes, deram um visibilidade acrescida às suas actividades no pujante meio cultural da capital checa.

Afinal, só Praga tem meia centena de teatros, alguns dos quais com bilheteiras esgotadas, e acolhe festivais internacionais de cinema, teatro, artes de palco e performance de rua. A futura biblioteca da capital checa «será mais avançada e mais interessante do que qualquer dos estádios de futebol» de Praga, o mesmo acontecendo nas principais cidades do país, sublinha Joaquim Ramos, que contrasta esta situação com a existente em Portugal, onde, em seu entender, «os artistas são bastante maltratados e a cultura é algo de secundário», ignorado pela comunicação social.

Não é assim de estranhar que a especial apetência dos checos pela cultura leve a que conheçam melhor a Cultura Portuguesa do que os portugueses a Cultura Checa. «O cinema checo, nomeadamente o cinema de animação, prestigiado internacionalmente, não chega às salas portuguesas», refere Joaquim Ramos, que cita como excepções os filmes Eu que servi o Rei de Inglaterra (Jirí Menzel, 2006) e Kolya (Jan Sverak, 1996). Já o cinema português «chega um pouco mais às salas checas; nada de especial, é certo», diz Joaquim Ramos, mas Manoel de Oliveira e César Monteiro «são populares q.b, como seriam outros se não fosse pedido um valor que ronda os 1500€ por sessão para se apresentar um filme num cinema checo, onde o bilhete de entrada pode rondar os 1,5€/2€».

Na literatura passa-se o mesmo, considera o leitor de Praga. Publicados estão Gil Vicente, Bernardim Ribeiro, Camões, Eça, Herculano, Pessoa, Florbela Espanca, Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner, Saramago, Lobo Antunes, Eduardo Lourenço e Miguel S. Tavares. Na forja estão José Luís Peixoto e Francisco José Viegas. «Isto porque existem tradutores de enorme gabarito que trabalham com o Português» (ver entrevista com Pavla Lidmilová neste caderno).

Em Portugal, a lista é mais curta e inclui nomes como Kafka, Jaroslav Hasek (O Valente Soldado Svejk), Milan Kundera e Bohumil Hrabal. Vaclav Havel, ex-Presidente da República Checa e dramaturgo, «anda desaparecido» das livrarias portuguesas, «apesar de ter passado várias temporadas na casa que manteve no Algarve durante alguns anos». «De qualquer forma, muitas destas traduções não se fazem directamente do checo, mas por via de outra língua. Vamos tendo um sabor do sentir literário checo através de Jorge Listopad, que nos vai entregando generosamente alguma prosa em português, porque a poesia, como confessa, ‘tem de ser escrita nas palavras que vieram com o leite da mãe\'».

O intercâmbio cultural é pois «tímido», considera Joaquim Ramos. Mas «há esperança», acrescenta, referindo o espectáculo que há ano e meio o coreógrafo Miguel Pereira concebeu, colocando em diálogo portugueses e checos na Praça da República, em Praga, «numa performance verdadeiramente fantástica».

Há também projectos para traduzir e legendar filmes checos para português, no âmbito de oficinas apoiadas pelo Instituto Camões resultantes de um trabalho de cooperação entre faculdades de Letras e de Cinematografia, evoca ainda. «Vamos ver o que nos reserva o futuro».