A música tradicional portuguesa está bem e recomenda-se. E vai ter a partir de Abril um mapa etno-musical em linha no Centro Virtual Camões, que mostra a distribuição pelo território da música e dos instrumentos musicais característicos de cada região, permitindo ainda ler a propósito textos explicativos e ouvir peças ilustrativas.
Número 137 · 8 de Abril de 2009 · Suplemento do JL n.º 1005, ano XXIX
O projecto é da autoria Júlio Pereira, um dos músicos que maior actividade tem desenvolvido pela preservação dos instrumentos tradicionais portugueses, e conta com a colaboração do historiador e produtor musical João Luís Oliva, responsável pelos textos do mapa, e com o grafismo de Sara Nobre.
Na base do mapa estão os levantamentos feitos pelo etnólogo Ernesto Veiga de Oliveira, que foi director do Museu de Etnologia e que «dedicou cerca de 40 anos da sua vida ao estudo das raízes tradicionais» portuguesas, conjuntamente com Benjamim Pereira, e pelo muito conhecido musicólogo Michel Giacometti.
Há 20 anos, quando fez uma primeira versão do mapa, Júlio Pereira baseou-se apenas em Veiga de Oliveira, que tem uma obra por ele considerada «mais aprofundada». Mas agora neste projecto, João Luís Oliva não só recorre a Giacometti como a José Alberto Sardinha, Domingos Morais, Artur Santos e outros – «todas as pessoas que estudaram o nosso país a este nível foram evidentemente consultadas», garante.
No entanto, o objectivo do mapa «não é de todo fazer uma coisa altamente aprofundada, para especialistas, sobre etno-musicologia», sublinha Júlio Pereira. «O objectivo é exactamente o contrário». Pretende «satisfazer a curiosidade» das pessoas, apostando no conceito ‘sabia que…’. «Com rigor, mas de uma maneira acessível» a qualquer um, diz.
Em última análise, Júlio Pereira ambiciona que o mapa, ou uma versão dele e da informação que carreia, chegue mesmo às crianças das escolas portuguesas. «Acho muito mais interessante saber quais os instrumentos e o som deles, os sons de um país ou de uma cultura, do que saber de fardas ou de outro tipo de coisas», sustenta.
O autor do emblemático disco Cavaquinho (1981) defende as virtudes didácticas de uma tal abordagem, exemplificando: Portugal tem cinco tipos de viola, todas com o mesmo número de cordas, tamanho mais ou menos idêntico e som parecido. O que é que difere? O timbre. E esse, para além das especificidades da técnica do construtor, reflecte as madeiras com que foi construído o instrumento, que variam de região para região. Uma criança pode ficar assim a saber quais as árvores do Minho, onde se fabrica a viola braguesa, ou do Alentejo, onde existe a viola campaniça. «Isto é igual para tudo, para flautas, para instrumentos de percussão, para o que quer que seja».
Se o mapa retrata o adquirido histórico da música tradicional portuguesa, nem por isso representa um qualquer tipo de exumação arqueológica musical. Porque, como sublinha Júlio Pereira, a situação da música e dos instrumentos tradicionais não é aquela que os media deixam transparecer. Com uma música «cada vez mais industrializada, mais comercializada», a rádio «só passa na sua grande maioria um determinado tipo de música anglo-saxónica», considera Júlio Pereira, que pergunta: «E então o resto da música?».
Todavia, mesmo nos meios académicos da etnologia, há algumas décadas, a música tradicional portuguesa era considerada moribunda. Domingos Morais, professor da Escola Superior de Teatro e Cinema e que colaborou com Ernesto Veiga de Oliveira na 2ª edição do livro deste, dedicado aos Instrumentos Musicais Populares Portugueses, escreve que Jorge Dias falava já em 1970 da «degradação da música tradicional portuguesa a partir dos anos 20, como um processo irreversível a curto prazo, que justificava a adopção de medidas eficazes para a sua salvaguarda». O próprio Júlio Pereira, segundo refere, se deixou contaminar, quando julgou, por exemplo, que o bandolim tinha morrido (v. artigo em baixo).
De facto, contra todas as expectativas, a música tradicional resistiu e está em expansão. «Estas últimas décadas, a seguir ao 25 de Abril, foram tão fortes… Só que não são visíveis», reconhece. Mas as culturas, acrescenta, «não morreram ao longo destes anos todos. Eu continuo a viver num determinado país, numa determinada zona do mundo que, ainda assim, produz objectos através das características da sua própria região».
Na origem do mapa que vai estar em linha no Centro Virtual Camões está a produção em 1988 do disco Miradouro, de Júlio Pereira.
«Nessa altura, lembrei-me de fazer um disco onde cada um dos temas fosse baseado nos elementos etno-musicais de cada uma das nossas regiões». Rapidamente lhe veio a ideia de ilustrar o projecto com um mapa, mostrando os instrumentos de cada uma das regiões.
Juntamente com o então director da Livraria Opinião, Hipólito Clemente, o designer gráfico Henrique Cayatte e o produtor musical Alberto Lopes, passou aos factos. E assim surgiu um mapa em papel, de 100X70cm, que acompanhou a edição do disco, ainda em vinil, com uma capa com recortes que permitiam vê-lo.
Há dois/três anos, quando colocou o mapa na sua página na internet, Júlio Pereira falou com Henrique Cayatte, que o desafiou a refazer o mapa, tanto mais que o original era em papel e, obviamente, não tinha som.
O texto original apresentava entretanto algumas lacunas, que o recurso a João Luís Oliva, uma pessoa «rigorosa» e «ligada à História toda a vida», permitiu colmatar.
Foi nessa altura que o projecto foi apresentado ao Instituto Camões, que decidiu apoiá-lo.