O confronto entre ‘revisionismo’ e fidelidade aos ‘acontecimentos’ e personagens no romance histórico esteve no centro dos debates da 2ª edição da Jornada Literária DE MAR A MAR, que teve lugar em Barcelona a 23 de Novembro e reuniu cultores e especialistas das línguas espanhola e portuguesa deste género literário.
Miguel Real, Miguel Sousa Tavares e Maria de Fátima Marinho foram os autores portugueses participantes na jornada organizada no Ateneo Barcelonès pela Cátedra José Saramago, da Universitat Autònoma de Barcelona, com o apoio do Consulado de Portugal na capital catalã, no âmbito da VII Mostra Portuguesa em Espanha.
Do lado espanhol estiveram presentes Sergi Doria, jornalista e escritor catalão, professor da Universitat Internacional de Catalunya, que moderou a primeira de duas mesas-redondas realizadas no âmbito das jornadas, a escritora espanhola Maria Pilar Queralt del Hierro, historiadora, editora e autora de diversas obras sobre figuras femininas da História de Portugal e de Espanha, Jordi Gracia, catedrático de Literatura Espanhola da Universitat de Barcelona e colaborador do diário El País, que moderou a segunda mesa-redonda, o escritor Ignacio Martínez de Pisón, cujos principais romances estão traduzidos para português, e Fernando Martínez Laínez, com uma ampla trajectória literária e jornalística, tendo sido durante cerca de 20 anos correspondente da Agência EFE.
«Não devem existir limites ficcionais para o romance histórico», defendeu Miguel Real na primeira mesa-redonda, subordinada ao tema O romance histórico: aspectos-chave deste fenómeno literário. O escritor e ensaísta português, que apresentou uma classificação do romance histórico português, extrapolável a outras literaturas europeias, destacou a grande dificuldade que representa este tipo de escrita e analisou as condições que considera deverem cumprir os autores de romances históricos. No seu entender, «na actual concepção [de romance histórico] não existem limites epistemológicos, apenas a sabedoria (e o talento) de harmonizar esteticamente factos e personagens de culturas e épocas diferentes».
As intervenções na mesa-redonda – em que Miguel Real antecipou de alguma forma o debate ocorrido na segunda parte das jornadas sobre a questão do revisionismo versus fidelidade – proporcionaram uma panorâmica da evolução do romance histórico, essencial para se poder entender o que estava em jogo.
Maria de Fátima Marinho analisou os aspectos fundamentais dessa evolução desde o século XVIII até aos nossos dias, explicando os principais factores intervenientes (por exemplo, o desenvolvimento da perspectiva do conceito dicotómico eu/outro), exemplificando com obras de autores portugueses e espanhóis (nomeadamente os presentes) o percurso do romance histórico que conduziu «à criação da história alternativa que desrespeita voluntariamente os factos históricos.»
Por seu lado, Maria Pilar Queralt del Hierro defendeu a necessidade de modificar a perspectiva primária da história que nos foi transmitida e procurar aprofundar a análise de certos temas como, por exemplo, no seu caso, dar voz às figuras femininas e fazer delas uma análise psicológica verosímil.
Na segunda mesa-redonda, Literatura, Jornalismo e Revisionismo Histórico, começou por se debater a utilização deste último conceito, definido por Fernando Martínez Laínez, que explicitou a pertinência da sua actual utilização.
Os escritores centraram-se fundamentalmente na análise da abordagem histórica da época da Guerra Civil espanhola, com duas perspectivas diferenciadas: a de Ignacio Martínez de Pisón, que defendeu, como autor de romance histórico, a utilização de uma perspectiva fiel do passado, segundo a actual interpretação dos documentos (que Miguel Real classifica como ‘Romance de análise histórico-político-social’), a partir da necessidade que teve de ser fiel aos factos históricos por, nos seus romances - citou nomeadamente a sua obra Enterrar a los Muertos - utilizar um personagem principal real, José Robles, em relação ao qual pretendia repor a verdade histórica dos acontecimentos.
Por seu lado, Miguel Sousa Tavares, além de reforçar as dificuldades inerentes a este tipo de escrita, defendeu a sua convicção de que não devem existir limites ficcionais para o romance histórico, destacando o prazer estético da escrita e da leitura, aos quais fez questão de acrescentar a necessidade do conhecimento da História. Referiu que, em relação à sua obra Equador (traduzida para espanhol com o título segundo ele incorrecto de El Gobernador), tinha sido bastante criticado por não ter respeitado a verdade histórica e explicou que, embora sempre assessorado por uma historiadora, optou conscientemente, no âmbito estritamente ficcional, por criar personagens fictícios que lhe interessavam para poder construir a história que ele queria contar.
As Jornadas DE MAR A MAR pretendem reunir periódica e alternadamente escritores de língua portuguesa e de língua espanhola nos seus diferentes países. No próximo ano, prevê-se que sejam organizadas no Brasil.
Encarte Camões no JL n.º 146
Suplemento da edição n.º 1023, de 16 a 29 de dezembro de 2009, do JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias