Leitorado de Kuala Lumpur
"Não é engraçado?". A interrogação, que é mais uma exclamação, pertence a Maria Cristiana Casimiro depois de exemplificar como é forte a influência da Língua Portuguesa no crioulo falado pelos chamados Portugueses de Malaca.
Número 125 · 7 de Maio de 2008 · Suplemento do JL n.º 981, ano XXVIII
«Uma palavra curiosa é \'dormir\' que em Kristang [o crioulo de Português] se diz \'cerar alfada\' -o \'c\' pronuncia-se ch, pelo que se lê \'cherar alfada\', ou seja, \'cheirar a almofada\', dormir\'», explicara antes a leitora de Língua e Cultura Portuguesa no Departamento de Línguas Asiáticas e Europeias da Faculdade de Línguas e Linguística da Universidade Malaya, em Kuala Lumpur.
Quando se fala da Malásia e dos portugueses não se pode deixar de falar de Malaca, onde chegaram os portugueses, faz 500 anos em 2009. Da passagem pela cidade, conquistada por Afonso de Albuquerque em 1511 e perdida em 1641 para os holandeses, ficaram as ruínas do que foi outrora uma imponente fortaleza e uma pequena comunidade, que a si mesma se intitula como portuguesa e que fala um crioulo de base portuguesa, o Kristang.
Os seus descendentes, espalhados por Malaca, Kuala Lumpur e pela vizinha cidade-estado de Singapura, são alguns dos muitos interessados em aprender hoje em dia o Português que Maria Cristiana Casimiro ministra na Universidade Malaya juntamente com o seu colega Jamian Mohamad, detentor de um mestrado feito em Lisboa.
Se no caso desta minoria cristã de Malaca é compreensível o interesse pela Língua e Cultura Portuguesa, mais «complicado» é explicar o de outros malasianos (a palavra que engloba os cidadãos da Malásia oriundos das suas comunidades, a saber, malaios [55-60%, na sua maioria muçulmanos], chineses, indianos e a pequena minoria euro-asiática), admite Maria Cristiana Casimiro.
Há em primeiro lugar as razões pragmáticas: «os alunos escolhem normalmente estudar Português como língua opcional, porque cabe no horário deles (e lhes dá créditos extras estudar outras línguas), ou porque ouviram dos colegas que seria interessante, etc., etc. A maior parte deles estuda apenas 2 semestres e depois vai para outra língua».
Mas se o pragmatismo fosse tudo, ficaria por explicar por que razão o Português foi a primeira entre 18 línguas a atingir os níveis 5 e 6, «o que nunca antes tinha acontecido, nesta Faculdade, com nenhuma das muitas línguas de opção oferecidas», sublinha a leitora do Instituto Camões.
No presente ano lectivo, os diferentes níveis têm um total de cerca de 190 alunos, oriundos sobretudo de Contabilidade, Engenharia, Artes e Ciências Sociais, mas também de Medicina, Enfermagem, Direito, Desporto, Estudos Malaios e de outros cursos de línguas.
Outro factor, no entender de Maria Cristiana Casimiro, pode ser a proximidade de Macau e da China e o facto de a maior parte dos alunos ser de origem chinesa.
As razões podem ainda ser idiossincráticas: afinal a Malásia é uma sociedade multicultural e é natural que os malasianos «gostem de saber mais de outras culturas», considera. «O certo é que o interesse também se cria» e nisso se tem empenhado a leitora.
Sobre Portugal os malasianos «não têm muitas ideias», admite Maria Cristiana Casimiro. Se não confundem os portugueses de Malaca com os outros, ignoram, por exemplo, que 200 palavras da língua malaia (oficial) são de origem portuguesa, 100 delas ainda em uso. As trocas culturais entre os dois países «são quase nulas» e não ajuda o facto de não haver um consulado no país.
Universidade à parte, a televisão acaba por ser a única fonte de informação dos malasianos sobre Portugal e esta, tirando o futebol, os fogos florestais ou «algo muito estranho», pouco fala do país, assim se pode resumir a percepção da leitora.
«No futebol, os mais populares são Luis Figo e, recentemente, Cristiano Ronaldo, claro. Os mais velhos ainda falam de Eusébio (dizem mesmo ‘Pantera Negra\') e de Amália, mas os mais novos, não sabem quem foram. Passam a saber, no caso de Amália, logo que se registam nas aulas de Português, pois vemos sempre, nas primeiras semanas, documentários sobre o melhor que Portugal tem».
«Eu tento dar-lhes uma ideia, o mais completa possível, com os filmes (modernos), fotografias, canções, etc., mas isso abrange apenas os meus alunos, infelizmente (e alguns pais que participam connosco)», diz Maria Cristiana Casimiro, que evoca a reacção que o Fado provoca nos seus alunos: «alguns quase se comovem, quando ouvem certos fados de Amália, a tristeza da sua voz».