Brasil: Uma cátedra que não é como as outras

A cátedra Jaime Cortesão, criada na Universidade de São Paulo (USP) em 1991, em pleno período das comemorações dos descobrimentos portugueses e com o apoio da respectiva comissão nacional portuguesa, está em mudança, segundo revela a presidente da sua comissão de gestão, a professora universitária brasileira Vera Ferlini, de passagem por Lisboa para contactos científicos.

Integrada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, a cátedra Jaime Cortesão é diferente daquilo que em Portugal se entende por uma cátedra. É «um centro de investigação», na definição de Vera Ferlini, desde o princípio envolvida no projecto. «Não é um locus privilegiado de docência de um professor. […] É um locus de investigação e um lugar de docência de muitos professores. Só do nosso departamento, hoje, temos 14 professores», que cobrem as áreas de História Ibérica, do Brasil, Contemporânea, de África e Moderna. «Estão vinculados à cátedra e exercem a sua docência na perspectiva das discussões que lá mantemos».

O carácter de centro de investigação está patente nos 300 m2 ocupados pelas instalações da cátedra no edifício dos departamentos de História e Geografia da FFLCH no campus da USP e nos mais de quatro mil volumes da sua biblioteca, que tornam a cátedra num local de grande movimento académico, que atrai os alunos de História de Portugal, Espanha e Brasil e mesmo de História Moderna, em linha com o bom estado da História no Brasil, atestado por uma oferta de cursos numerosa.

De facto, vocacionada inicialmente para o período moderno (sécs. XV-XVIII e início do XIX) luso-brasileiro, a cátedra – que mantém um convénio com o Instituto Camões (IC), renovado em Agosto passado por mais 3 anos, nos termos do qual este lhe atribui, nomeadamente, um financiamento anual de 30 mil euros – tem vindo a alargar as suas áreas de interesse, tendo lançado nos últimos anos novos projectos a montante e a jusante daquele período, ou seja, virados para a História Medieval portuguesa e para a História Contemporânea (sécs. XIX-XX) no mundo de língua portuguesa.

Foi para desenvolver essas áreas e estreitar intercâmbios que Vera Ferlini, que também preside à comissão dos programas de pós-graduação da FFLCH, manteve agora em Portugal contactos com docentes e investigadores portugueses. Na área medieval, o grupo brasileiro tem «uma ligação muito grande com professores, tanto de aqui, da Faculdade de Letras de Lisboa (FLL), como da Universidade de Coimbra (UC), entre eles a professora Manuela Mendonça, que é presidente da Academia [Portuguesa de História], e a professora Maria Helena da Cruz Coelho». Na área Contemporânea Vera Ferlini contactou com o Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS 20), de Coimbra, dos professores Maria Manuela Tavares Ribeiro e Luís dos Reis Torgal, o Instituto de Ciências Sociais (ICS), a Universidade Nova de Lisboa e a FLL.

A terminar em Abril próximo está um projecto temático de cinco anos da cátedra, intitulado Dimensões do Império português, que tem mobilizado os seus investigadores em torno de um dos temas mais polémicos da actual historiografia brasileira e portuguesa, a saber, a natureza do sistema de governo – centralizado/descentralizado – no espaço português no período moderno. No âmbito da cátedra, o projecto apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) – uma espécie de FCT brasileira – «envolveu 18 professores, cerca de 8 pós-doutorandos e, entre alunos de doutarado, mestrado e iniciação científica, para mais de cem», refere Vera Ferlini.

 

A chancela

Entre os novos projectos da cátedra, a sua presidente enumera duas iniciativas: um colóquio sobre os 100 anos da República Portuguesa, com investigadores brasileiros e portugueses, para o que já manteve contactos em Coimbra, e um seminário sobre o processo constitucional no mundo ibero-brasileiro, partindo da reunião da Constituinte espanhola, que produziu a Constituição de Cádis de 1812, a primeira do mundo ibero-americano – e de que se comemoram em 2010 os 200 anos do seu início –, e a que se seguiram as constituições de 1822 em Portugal, na sequência da revolução liberal de 1820, de 1824 no Brasil, após a independência de 1822, outorgada pelo Imperador D. Pedro I, e que consagrava o poder moderador do monarca, e a sua «irmã gémea», a Carta Constitucional portuguesa, de 1826, do mesmo D. Pedro, agora IV de Portugal. No seminário, Ferlini quer pôr em contraste as visões que existem na historiografia brasileira e portuguesa sobre D. Pedro, visto como um «monarca absolutista» no hemisfério sul, e o «grande liberal», no hemisfério norte, cujos objectivos em Portugal só após 1974 foram alcançados, no dizer da historiadora brasileira.

Um tópico ainda em formulação diz respeito a um projecto de investigação sobre «o mundo luso-brasileiro no período da ruptura, 1750 a 1850». O objectivo é esclarecer a questão da «possibilidade de desenvolvimento manufactureiro, industrial em Portugal e as suas ligações com o novo arranjo que, já com [o marquês de] Pombal, se aponta, e com D. Rodrigo de Sousa Coutinho se afirma, da relação Brasil-Portugal». O Brasil foi «a peça que faltou após o fim do período napoleónico». «Não é uma coisa que nós inventámos. O Antero [de Quental] também já dizia isso. Toda a política colonial portuguesa da segunda metade do século XIX aponta para isso. O mapa cor-de-rosa não nos deixa mentir», afirma Ferlini.

Preparando este projecto, a cátedra está a constituir um banco de dados, a ser colocado em linha, sobre o comércio português a partir das balanças de comércio do Reino de Portugal e que um grupo de alunos da licenciatura de História da USP começou já a trabalhar. Há também um banco de dados de cartografia histórica que vai estar em linha, que também é uma decorrência do projecto, segundo a historiadora brasileira.

Outros projectos ligados à época moderna dizem respeito à História da Cultura, «porque há um grupo muito activo em História da Cultura», segundo Ferlini.

Para tudo isto, Vera Ferlini sublinha a importância do apoio que o Instituto Camões presta à cátedra Jaime Cortesão desde 1998, altura em que se substituiu nesse papel à extinta Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, não tanto pelos montantes e meios envolvidos, mas pelo que ela representa.

O convénio entre a USP e o IC, assinado em Agosto de 1997, estabeleceu para a cátedra um plano de acção centrado na investigação e no ensino da História de Portugal, com ênfase no intercâmbio de docentes e investigadores, em publicações e no apoio a bolsas para alunos de pós-graduação.

Mas, no dizer da sua presidente, «a principal vantagem é a chancela do IC», que funciona «quase que como um selo de garantia, como algo que nos dá uma autoridade intelectual de interlocução». «Acho que isto é o elemento mais importante», reforça Vera Ferlini, que destaca também os subsídios atribuídos pelo IC, mais substanciais quando a cátedra se transferiu em 1998 do Instituto de Estudos Avançados da USP para a FFLCH da mesma universidade e que permitiu a sua consolidação.

Hoje esses subsídios, além de possibilitarem manter a gestão da biblioteca da cátedra separada da biblioteca central da USP, financiam também – «questão mais importante e que nos garante uma visibilidade muito grande no Brasil», segundo Vera Ferlini – o programa de bolsas a mestrandos e doutorandos, para que estes possam realizar um período de investigações em Portugal. «Esse é o nosso principal vínculo com o IC», considera. Nos sete anos de existência das bolsas, cerca de 80 investigadores foram contemplados. O programa, refere, é particularmente procurado pelos alunos de mestrado, porque no Brasil, tal como em Portugal, não há bolsas para este nível académico. Só a nível do doutoramento.

Mas no dizer da historiadora e docente brasileira, os benefícios do patrocínio do IC à cátedra estendem-se ainda ao que designou como «contrapartidas». «Como a cátedra se firmou, o vínculo com o IC é uma contrapartida importante quando demandamos outras financiadoras brasileiras», afirma. E é igualmente importante «porque abre as portas à interlocução e às universidades e aos grupos académicos de cá».

«Num momento em que temos de lutar, em que sabemos que a História é importante, em que há um ‘mercado’ para a História no Brasil, lutar para que a área de História cresça e tenha significação no âmbito da universidade, a chancela do Camões é sem dúvida importante», remata Vera Ferlini.

 

Encarte Camões no JL n.º 145

Suplemento da edição n.º 1021, de 18 de novembro a 1 de dezembro de 2009, do JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias