Um belo conto de fadas…

Pavla Lidmilová

Se as literaturas portuguesa e brasileira são hoje conhecidas na República Checa, muito, mas mesmo muito se deve a Pavla Lidmilová, a tradutora de Fernando Pessoa (já existem dez volumes da sua obra em checo) e de muitos outros autores.

Número 130   ·   24 de Setembro de 2008   ·   Suplemento do JL n.º 991, ano XXVIII

Pavla LidmilováNascida em 2 de Fevereiro de 1932, Pavla Lidmilová é, segundo a expressão do responsável do Centro de Língua Portuguesa/Instituto Camões de Praga, Joaquim Ramos, «um mito vivo da lusitanidade na República Checa».

Após a sua licenciatura em 1951, trabalhou como técnica especialista na Academia de Ciências da Checoslováquia. Mas o seu contacto com a Língua Portuguesa (LP) fez-se como redactora do serviço externo da Rádio Nacional Checoslovaca e, depois, no Gabinete para a Filologia Moderna do Instituto para a Literatura Checa e Mundial.

Os seus méritos já foram reconhecidos tanto pelo Estado português como pelo Estado brasileiro. E em 2005 foi agraciada com o Prémio do Estado da República Checa para a Tradução; a cerimónia de entrega deste prémio, o mais importante da nação checa, terminou com versos de Fernando Pessoa, lidos publicamente perante todos os laureados.

Embora não leccione, é uma referência de todos os alunos de Estudos Portugueses na República Checa. Quando em Junho passado foi lançada uma tradução sua de um livro de poemas de Alberto Caeiro, vieram alunos finalistas de Português da Universidade de Olomouc, 300 quilómetros a nordeste de Praga, relata Joaquim Ramos. «Alguns fizeram perguntas, outros tomaram um copo de vinho com ela. No final, alguns falavam sobre a emoção que sentiam por ver a Pavla ‚‘ao vivo\'».

«Demorei um bocado a perceber porque é que esta personagem baixa e magrinha cativava tanto as pessoas, e só consegui depois de privar com ela algum tempo. Trata-se, de facto, de uma sensibilidade e de uma força enorme, personificadas num corpo frágil», remata Joaquim Ramos.

Nesta entrevista, Pavla Lidmilová fala de como chegou às literaturas de LP, das relações culturais entre os dois pequenos países europeus, das suas preferências literárias, do seu método de trabalho e também dos seus projectos.

 

Começou por estudar espanhol. Como é que chegou à LP?

Por um dos acasos que a vida nos prepara. Mas mesmo os acasos têm os seus motivos... talvez na infância, num belo conto de fadas sobre o Rei de Portugal. O conto perdeu-se, alguma coisa ficou. Assim, por vias sinuosas, procurando emprego nos tempos difíceis, cheguei até às emissões para o estrangeiro da Rádio Praga. Foi uma grande experiência no que toca ao encontro com a LP, nas suas duas variantes - a portuguesa e a brasileira. É que naquele tempo (na passagem dos anos 50 e 60), devido ao regime político, quase não se podia viajar para o estrangeiro e não havia muita literatura actualizada em línguas estrangeiras.

Portugal e a República Checa, se não são muito distantes a uma escala global e se são hoje ambos membros da União Europeia, parecem culturalmente longínquos. Conhecemos Kafka, lemos Milan Kundera e emocionámo-nos com a figura de Václav Havel, mas pouco mais...Do lado checo não se passa um pouco a mesma coisa?

Não me parece que a distância cultural entre Portugal e a República Checa fosse tão grande, pelo menos pelo que se podia ver nos livros portugueses que podem ser lidos em traduções para a Língua Checa.

Desde o ano de 1898 - quando foi traduzido e publicado, numa bela edição, o romance As Pupilas do Senhor Reitor, de Júlio Dinis, desde 1900 - ano da tradução de Belkiss, Rainha de Sabá, d\'Axum e do Hymiar, de Eugénio de Castro, e de 1902 - quando o nosso grande poeta Jaroslav Vrchlický traduziu Os Lusíadas, as versões de poesia, prosa e teatro em LP, publicadas em livro, atingiram um número aproximado de 70 títulos. (...)

Os autores portugueses mais traduzidos, nos anos passados, foram, de início, Camões e Ferreira de Castro; depois, Eça de Queirós, agora é Fernando Pessoa. Uma das tiragens mais elevadas foi conseguida pela edição, que saiu três vezes, de O Crime do Padre Amaro, e acho que também pelo volume Cinco Novelas Portuguesas (Sá-Carneiro, Branquinho da Fonseca, Carlos de Oliveira, Ferreira de Castro, Hélia Correia), preparado para o então popular Clube de Leitores, da prestigiada editora «Odeon», de Praga.

Entre os livros publicados, apareceram também alguns livros históricos e a tradução da História da Literatura Portuguesa, de António José Saraiva - Óscar Lopes, e duas vezes o Dicionário de Escritores de Espanha e de Portugal, obra original de autores checos, assim como o Dicionário de Dramaturgos Portugueses.

No entanto, é preciso sublinhar que, há vários anos, mais ou menos desde o início da década de 90, as instituições portuguesas (Fundação Gulbenkian, Instituto Camões, Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas) estão a apoiar, financeiramente, a edição das obras dos escritores portugueses, em Língua Checa. Também continuam concedendo bolsas de estudo em Portugal aos estudantes e investigadores checos.

Quanto a literatura checa traduzida para a LP, a lista seria, certamente, bem menor. Não conheço as razões - a falta de tradutores do checo para o português, pouco interesse das editoras e dos leitores em Portugal, a necessidade de subvenções da parte checa?...

Não podemos esquecer que a literatura portuguesa conta com um espaço territorial e com um número de falantes de LP muito maiores do que a literatura em Língua Checa. Ela nasce e é lida em quatro continentes e não precisa de tantos contactos literários como a literatura checa, limitada ao seu pequeno território.

Fernando Pessoa e Paulo Coelho são, aparentemente, os autores de LP que mais traduziu. No entanto, são muito diferentes...

Eu estou a traduzir não para mim, mas para os leitores. E há leitores tão diferentes quanto os autores, há várias ocasiões para ler, várias idades para ler... Gosto de trabalhar chamando o interesse de diferentes camadas de pessoas. E gosto também da minha Língua Checa que é capaz de exprimir tantas diferenças, nuances, situações, profundezas psicológicas e aspectos do mundo físico. Há quem procure o simples prazer da leitura e há outros que buscam nisso conhecimentos e o enriquecimento intelectual...

Autores como Saramago, Lobo Antunes e Agustina estão ausentes da sua longa lista de traduções. Alguma razão especial?

José Saramago e António Lobo Antunes foram traduzidos pelas minhas colegas mais jovens, muito competentes. Agustina Bessa-Luís ainda não é conhecida pelos leitores checos. Tenho desta autora uma pequena tradução, ainda não publicada, dos aforismos.

Como é sabido, além da simples tradução, é preciso divulgar o nome e a obra do respectivo autor no meio literário e editorial. Através de artigos, recensões, propostas para as editoras, bem como de estudos críticos nos próprios livros traduzidos, visando todo o contexto literário da época, chama-se a atenção para os autores não traduzidos ainda. É o que tenho feito também.

Tem no seu currículo traduzidos praticamente tantos autores portugueses como brasileiros, mas são mais escassos os autores africanos de LP. Um acaso ou uma opção?

A literatura africana constitui um problema editorial. O público checo não a procura muito e o entusiasmo de alguns tradutores não basta. Quanto a mim, traduzi, em livro, a poesia de Agostinho Neto e a ficção de Luandino Vieira. De Pepetela, verti longos trechos do seu romance A Geração da Utopia, para uma revista, com o comentário sobre o escritor. E também vários poemas e contos de outros escritores africanos de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e de Cabo Verde para as revistas literárias.

Aqui queria destacar o papel da revista checa Světová literatura (Literatura Mundial) que, durante dezenas de anos, apresentou aos leitores checos e eslovacos muitos nomes de escritores de LP, entre os melhores escritores do mundo inteiro. Foi um serviço inestimável aos leitores e aos editores, no ambiente cultural bastante fechado do regime comunista. (...)

Quais são os seus autores preferidos nas literaturas de LP? E entre os autores checos?

Entre os meus autores preferidos de LP figura Fernando Pessoa, João Guimarães Rosa, Eugénio de Andrade, Eduardo Lourenço - e outros, é difícil escolher.

Entre os checos, são os prosadores Vladislav Vančura e Karel Čapek, entre os poetas, Karel Hynek Mácha, Jaroslav Seifert (o nosso Nobel), Vladimír Holan. Muito importante é para mim a sua relação com a linguagem.

Em Portugal, aquilo que se traduz está muito dependente das editoras e estas, com algumas excepções, seguem cada vez mais as imposições do mercado. Na República Checa como se passam as coisas?

Desde a Revolução de Veludo, a situação na esfera da edição de livros tem-se tornado tão diferente que seria necessário um longo esclarecimento sobre as condições políticas e económicas. Em geral, porém, as literaturas de LP não eram, para o regime anterior, tão importantes, e por isso, vigiadas tão rigorosamente como, p. ex., a edição dos livros de língua inglesa ou francesa. Hoje prevalecem também as imposições do mercado.

Como encara o trabalho de tradução? Que regras segue? Como encara os seus dilemas?

Estudei várias teorias de translatologia que, no entanto, mudam no decorrer da história, de geração em geração, e oscilam entre os extremos nas concepções de traduzir, desde a possível fidelidade à obra original, até à sua recriação e actualização. Claro que há regras elementares; importante é, porém, abordar individualmente cada autor e cada uma das suas obras, considerar os valores conceptuais e estilísticos dessa obra, visando o direito do leitor de chegar, na base da interpretação e da versão do tradutor, à sua própria concretização da respectiva obra literária, sem perder o gosto pela leitura. Acho que a maioria dos problemas são resolvidos pela experiência, sensibilidade e capacidade de empatia do tradutor. Além disso, seria preciso falar de casos concretos, p. ex., de Camões ou de Guimarães Rosa, de Cardoso Pires ou de José J. Veiga. Eu sou mais do tipo intuitivo. Preciso de conviver com as obras literárias, deixar que tenham repercussão na minha experiência e procurar logo a expressão adequada, fazer tudo «a quente». A maioria das traduções de poesia e de ficção escrevi-as à mão. A mão, escrevendo no papel, responde melhor, para mim, ao impulso do pensamento; só depois passo o texto a limpo, corrigindo ainda.

Como é o seu método de trabalho? Trabalha sozinha, procura a colaboração de outras pessoas, consulta terceiros enquanto trabalha ou só depois de ter a tradução concluída?

Procuro, até obsessivamente, a exactidão na tradução das coisas reais, dos objectos e dados concretos. Difícil é, p. ex., a versão dos nomes de alguns casos de fauna e de flora exóticos que não têm nomes checos. Se for preciso, consulto as fontes ou os especialistas e, se for possível, os próprios autores. Caso a caso.

Em geral, trabalho sozinha. Em algumas traduções da poesia de Fernando Pessoa, colaborei com o poeta Josef Hiršal. Há também várias antologias em que trabalhamos em conjunto com outros tradutores.

O seu trabalho já foi homenageado tanto em Portugal como no Brasil. Em 2005, o Estado Checo atribuiu-lhe um prémio de grande prestígio. Que importância tem para si este reconhecimento?

O reconhecimento oficial deste tipo é sempre importante, mas constitui um desafio para o futuro. Por outro lado, considero este Prémio Nacional de Tradução como um reconhecimento da importância das literaturas de LP para a nossa cultura. Os escritores portugueses e brasileiros já fazem parte da nossa experiência comum, são citados pelos críticos, aparecem adaptados ao teatro e lidos nos discos, publicam-se as recensões dos livros traduzidos nos principais diários ou semanários checos.

Pensa que os leitores checos conhecem hoje melhor as literaturas de LP do que há 30-40 anos? E no resto do mundo, o que lhe diz a sua sensibilidade como tradutora e especialista nas literaturas de LP?

Sem dúvida nenhuma, os leitores checos conhecem hoje melhor as literaturas de LP. Já o número de autores traduzidos, de várias etapas de história literária, bem como os manuais da literatura portuguesa e brasileira que estão à disposição, falam por si próprios. Alguns nomes máximos destas literaturas já se tornaram familiares não só aos estudantes ou aos especialistas, como também ao público literário mais amplo. Este processo vai continuar.

Não me atrevo a dar a minha opinião, neste sentido, quanto a outros países do mundo, não disponho de dados necessários.

Que projectos tem em mãos? Há sempre alguma coisa que está por fazer...

Os meus projectos? No horizonte mais próximo, continuar: Fernando Pessoa (já temos mais de dez volumes da obra dele, em checo), Eugénio de Andrade.

Outros colegas meus estão a trabalhar (ou já a terminar) nas traduções de diversos escritores de LP: Bernardim Ribeiro, Francisco José Viegas, João Guimarães Rosa, Teolinda Gersão, Chico Buarque, José Luís Peixoto, Cesário Verde, Fernando Morais.