Grupo universitário Teatro Lusotaque de Colónia
Não foram apenas coevos. Muito nas suas biografias e obras os aproxima. Representam bem as suas línguas, são hoje em dia clássicos de estudo obrigatório nas escolas e, embora um mais na poesia e outro na prosa, os temas das suas obras e as suas vidas revelam «uma angústia profunda, uma ansiedade frente a um mundo exterior que é diferente do seu mundo interior».
Número 135 · 11 de Fevereiro de 2009 · Suplemento do JL n.º 1001, ano XXVIII
Fernando Pessoa (1888-1935) e Franz Kafka (1883-1924) são os autores de Língua Portuguesa e de Língua Alemã cujos textos e vida serviram de base ao espectáculo bilingue que o grupo universitário Teatro Lusotaque - uma companhia formada pelos estudantes de Português da Universidade de Colónia - estreou a 23 e 24 de Janeiro na Alemanha, na sala Orangerie de Colónia, e representou depois a 31 de Janeiro na Gasteig/Black Box de Munique.
Através de uma colagem de textos dos dois autores, são apresentados «os delírios, medos, angústias, febre criativa dos dois autores», que a companhia considera «talvez dos mais universais nos mundos de Língua Portuguesa e de Língua Alemã».
NasciMente - KopfGeburten - é a designação do espectáculo, que alude assim, no seu título, ao «intenso trabalho mental» que une os dois autores, «do qual são fruto diversas personagens e um imenso projecto literário, capaz de ocupar mais do que uma vida», no dizer de Beatriz de Medeiros Silva, leitora do Instituto Camões (IC) na Universidade de Colónia e criadora da companhia em 2006.
A ideia de aproximar estes dois autores surgiu à leitora portuguesa de uma viagem a Praga. «À semelhança do que acontece com Pessoa e a cidade de Lisboa, o mesmo se passa com Kafka e Praga, são indissociáveis as cidades dos seus escritores, que as representam a vários níveis e são aproveitados exaustivamente pelo turismo», diz Beatriz de Medeiros Silva, que estudou o autor checo de Língua Alemã na Universidade, onde fez também Estudos Alemães.
Mas semelhanças são mais e mais profundas. «Pessoa, no mundo lusófono, tal como Kafka, no mundo de língua alemã, têm o estatuto de clássicos da literatura moderna/modernista, apesar de se terem tornado famosos só após a sua morte. Ambos são temas obrigatórios na escola portuguesa e alemã, e normalmente apreciados pelos alunos, em parte pela sua própria universalidade. Embora Kafka tenha escrito prosa e Pessoa fundamentalmente poesia, os temas dos seus textos parecem-se», enuncia Beatriz de Medeiros Silva.
«Para ambos a escrita era uma necessidade, uma obsessão, uma arma de auto-defesa», explica a docente universitária que estende as semelhanças entre os dois autores ao facto de ambos terem mudado de casa «muitas vezes, mas sempre dentro de uma só cidade: a incapacidade de descansar, de "chegar" a um lugar, mostra-se nisso».
Ademais, diz, «os dois tiveram profissões além da escrita: Kafka numa empresa de seguros, Pessoa em vários escritórios. E os dois tiveram relações com mulheres que acabaram mal - Kafka com três, Pessoa com uma só. Nem um nem outro foi capaz de comprometer-se, de deixar uma mulher entrar no seu espaço íntimo, ainda que o quisessem».
Para dar corpo a estas semelhanças, a direcção do espectáculo - que esteve a cargo de um quarteto de jovens alunos e mobilizou treze actores, uma equipa de música, outra de coreografia e um técnico de som/luz - recorreu a formas verbais e não verbais de representação, «em que entram elementos de dança e de música, de formas mais intimistas até cómico-grotescas, numa interpretação muito pessoal dos estudantes de Português da Universidade de Colónia», segundo a descrição da própria companhia.
O espectáculo foi a primeira apresentação do Teatro Lusotaque em que foi usado Alemão. «Como Colónia tem muitos habitantes portugueses, brasileiros e alemães lusófonos - por serem estudantes da LP ou terem passado um tempo em Portugal ou no Brasil -, o grupo tem e sempre teve um público lusófono/ lusófilo interessado», explica a leitora.
Sendo os textos de o autor de A Metamorfose e de O Processo originalmente em Alemão, «convinha» usar este idioma, segundo Beatriz de Medeiros Silva. O público pôde ser «mais vasto», abrangendo os não-lusófonos, recompensou a «fidelidade» dos espectadores que, não entendendo o Português, fizeram a experiência «extrema» de ver teatro numa língua estrangeira, e permitiu a actores mais inibidos com uma língua estrangeira falarem no seu próprio idioma, refere a leitora. «O confronto entre estas duas experiências revelou-se criativo e mais uma forma de encarar as próprias realidades pessoais dos estudantes participantes do grupo de teatro».
Fundado em 2006 pela leitora do IC na Universidade de Colónia, Beatriz de Medeiros Silva, o Grupo Lusotaque integra, consoante os semestres escolares, entre 10 a 30 estudantes, professores e outros entusiastas do teatro, sendo poucos os que têm o Português como língua materna. Flutuante na sua composição, o Lusotaque, afirma a leitora de Português na Universidade de Colónia, tem já um «núcleo duro», que se responsabilizou pela encenação de NasciMente - KopfGeburten, mostrando uma certa consolidação da companhia, consolidação essa que se tem também manifestado em termos estéticos. «As exigências estéticas têm aumentado consideravelmente, o trabalho é cada vez mais artístico», afirma, que já fora responsável pela criação de um outro grupo de teatro universitário - os Quasilusos -, quando da sua passagem por Freiburgo. Segundo ela, o Lusotaque faz já «parte da paisagem cultural da cidade de Colónia, uma das mais multi-culturais da Alemanha». «Recebemos constantemente convites para apresentar as nossas peças noutras cidades», revela. No II festival de teatro dos leitorados, realizado em Oeiras, entre 21 e 25 de Julho de 2008, o Teatro Lusotaque apresentou o espectáculo inQUIETudes, que partia de textos e poesias de Fernando Pessoa para tratar o tema do "Desassossego", desenvolvido em quadros acompanhados por música ao vivo. A dramatização de textos literários marcou as anteriores produções do grupo. No Verão de 2006, apresentaram uma noite de sketches, a que se seguiram as peças A Fogueira (sobre textos de Pepetela e Mia Couto), em Fevereiro de 2007, o Paraíso (baseada na obra de Miguel Torga), no Verão de 2007, e Vestido de Noiva (do autor brasileiro Nelson Rodrigues), em Fevereiro de 2008. Beatriz de Medeiros Silva, que chegou ao teatro «como interessada e passatempo, na escola e na faculdade», sublinha: «de todos os projectos que já desenvolvi no meu trabalho de leitora, o que trouxe mais alegrias e é, para mim, sem dúvida, o mais produtivo, o que traz uma aprendizagem mais efectiva, mais lusófona e mais consistente é o grupo de teatro universitário de LP». |