Com doze palavras apenas se pode sondar a «alma portuguesa». Foi o que fez Zuzanna Bułat Silva, investigadora de Linguística Cognitiva, no livro Fado-aproximação semântica. Um intento de interpretação das palavras-chave (Fado-podejście semantyczne. Próba interpretacji słów kluczy), publicado em Abril passado na Polónia pela editora Oficyna Wydawnicza ATUT, na colecção académica Dissertationes Inaugurales Selectae.
Número 130 · 24 de Setembro de 2008 · Suplemento do JL n.º 991, ano XXVIII
A obra, tese de doutoramento em Ciências da Linguagem desta professora do Departamento de Filologia Românica da Universidade de Wroclaw (Polónia), pretende mostrar aos leitores polacos, no dizer da sua autora, «alguns aspectos e valores da cultura portuguesa, a assim chamada imagem linguística do mundo dos portugueses».
Para tal, socorreu-se «do significado lexical de umas 12 palavras» e do seu tratamento nas letras dos fados, palavras essas que Zuzanna Bulat Silva considera como sendo «chaves» para a cultura portuguesa. «Definindo o significado lexical duma palavra-chave somos capazes de mostrar os valores subjacentes de uma dada cultura e ver como é entendido um determinado conceito nesta cultura, por exemplo amor ou destino». Quando se define o significado central de uma palavra, atingimos a «invariante semântica», um conceito central neste tipo de análise.
Três domínios cognitivos foram investigados pela professora polaca, que no decurso do seu trabalho visitou Portugal por duas vezes, em 2002 e em 2005, com bolsas do Instituto Camões «para fazer a pesquisa bibliográfica, falar com os professores portugueses e ... ouvir fado, claro». Os domínios foram Amor, Dor e Destino. No primeiro definiu três palavras: amor, paixão e ternura; o segundo é constituído por seis palavras: amargura, dor, mágoa, pena, saudade e tristeza; o terceiro também tem três palavras: destino, fado e sorte.
Como é que as palavras surgiram? «O meu corpus consiste em 254 canções do fado lisboeta. Fiz a concordância, isto é, contei todas as palavras do corpus. Depois comparei a frequência das palavras do topo da lista com a sua frequência no corpus do Português em linha (http://www.clul.ul.pt/). As palavras que eram muito mais frequentes nas canções do que no corpus em linha são as palavras-chave do fado», explica Zuzanna Bulat Silva. A sua tese é de que estas palavras «são importantes para a cultura portuguesa, isto é, são as palavras-chave dela».
A investigadora polaca contesta aqueles que consideram o Fado uma manifestação muito localizada na sociedade portuguesa. «Acho que o Fado é um género muito característico para a cultura portuguesa. Os portugueses podem gostar dele ou não, mas todos conhecem os estereótipos sobre a alma portuguesa a que se referem aqueles textos», afirma a estudiosa polaca, recordando, a propósito, o que escreveu Chico Buarque no Fado Tropical: «Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo». «Além do lirismo, há também sentimentalidade, fatalismo e a palavra mais portuguesa de todas, a saudade - ‘tudo isto é Fado\', para citar um fado mais», acrescenta.
Segundo a investigadora polaca, o corpus dos textos dos fados por si estudado foi constituído de uma «maneira muito simples: as canções vêm dos livros que falam sobre o Fado (como p. ex., [Eduardo] Sucena, [Alberto] Pimentel, Pinto de Carvalho [„Tinop"]), dos livros (ou páginas soltas) com a música (pauta) e textos do fado, dos CDs (p.ex., Mariza) e também da Internet. Decidi considerar Fado tudo aquilo que é cantado como fado, não dividi os textos de maneira nenhuma».
A ideia de abordar o tema do Fado de Lisboa do ponto de vista semântico surgiu de alguma maneira dos seus interesses pessoais, conta. «Sempre me interessei pelas canções tradicionais (há muito tempo também cantava um pouco), depois quando comecei a frequentar o leitorado da Língua Portuguesa na Universidade de Wrocław nasceu o meu amor pelo Fado. Por outro lado, sempre gostei muito da linguística e, terminados os estudos de Mestrado, decidi continuar a minha carreira académica e escrever a tese de doutoramento. Desde o princípio sabia que a minha metodologia iria ser a metalíngua semântica natural de Anna Wierzbicka e que ia concentrar-me nas relações entre a Língua e a Cultura. Mas não sabia que tipo de textos ia investigar. E de repente surgiu a ideia de ‘casar\' o Fado com a ciência e assim foi concebido o tema deste livro».
Agora, Zuzanna Bulat Silva, que tem publicado trabalhos seus nomeadamente nos Estudios Hispánicos, Studia Linguistica e Orbis Linguarum e que foi tradutora para Polaco do Zahir do escritor brasileiro Paulo Coelho e da banda sonora do filme FADOS, de Carlos Saura, está a preparar o texto em que compara a palavra portuguesa saudade com o seu equivalente polaco tęsknota.