O mundo à distância de uma Residência

Maior visibilidade, melhores condições de trabalho, «disponibilidade mental» para o processo criativo, procura de novos estímulos e de interacção com outros criadores. As motivações são variadas, mas nenhum criador, seja ele um artista plástico ou um escritor, considera que as residências no estrangeiro (ou dentro de portas) representem uma perda de tempo.

Número 126   ·   4 de Junho de 2008   ·   Suplemento do JL n.º 983, ano XXVIII

Miguel Palma
Miguel Palma, 360º, instalação, 2007
E, no entanto, pouco se justificaria hoje em dia partir. Afinal o mundo está mesmo à distância de um clique. A revolução nas comunicações tornou possível ver e ouvir (e num dia não muito distante sentir e cheirar) tudo o que ocorre pelo mundo.

No entanto, para Jorge Cruz, um artista plástico de 34 anos com experiência de residências em locais tão diferentes como a Alemanha ou Marrocos, o Alentejo ou a Índia, as residências «fazem cada vez mais sentido neste tipo de organização global». «Tudo o que temos disponível através de um clique no computador é uma imagem [do mundo], nem sempre exacta», considera o pintor, para quem «o processo em cada residência artística deve ser um processo de assimilação, trilhado e inspirado na experiência directa com as pessoas, com os locais». «E a isso a globalização ainda não deu uma resposta eficiente.»

Semelhante é o entendimento do dramaturgo, encenador e crítico, Jorge Louraço Figueira (1973), que em 2007 esteve em residência, em São Paulo, na companhia brasileira Folias d\'Arte. «Há ideias que surgem da própria interacção e há coisas que alimentam o trabalho que só acontecem com a presença física e que têm a ver com um conhecimento mais completo do outro, por um lado, e pela confiança pessoal, por outro».

À questão de saber se a tecnologia do mundo global não criou essa proximidade, ao anular as distâncias, João Simões (1971), um artista plástico que interpela a tecnologia e o seu contexto, responde não. «A tecnologia não anula o espaço; cria outros espaços, outros comportamentos», defende. «A experiência online e offline complementam-se, não são concorrentes nem se anulam», diz o artista plástico, presentemente em Nova Iorque, no PointB, onde já esteve em 2007 com o apoio do Instituto Camões (IC).

Contudo, para a opção pelas residências, há também as razões próprias do criador. «Essencialmente o que é importante é mudar, mudar de hábitos, mudar de rotinas de local de trabalho, de clima», diz Jorge Cruz. «Esse sentimento de ‘desnorte\' característico de quando chegamos a local desconhecido, sem referências e certezas é essencial ao meu processo criativo».

A localização é, de alguma forma, um método para Jorge Cruz, que nesta mudança de espaço centra o seu processo de trabalho no contacto com as estéticas e no uso de materiais locais (telas, tintas, etc.) em colaboração com artistas ou artesãos nativos, preocupando-se, por último, em expor os resultados localmente, para «fomentar o diálogo com artistas e o encontro de novos públicos».

«Estar num espaço que não nos pertence oferece resistência», considera por seu lado João Simões, que entre a Faculdade de Arquitectura em Milão, o estágio em Paris, o mestrado em Barcelona, uma passagem por Madrid e residências em Nova Iorque (ISCP - International Studio and Curatorial Program - e PointB) e noutras paragens passou quase 10 anos fora de Lisboa, «sempre com o mesmo objectivo - trabalhar». «É nessa resistência que o trabalho se revela. Mudar de espaço é fundamental. As residências artísticas são perfeitas para ter essa experiência: a de estar, durante algum tempo, noutro sítio».

Visibilidade

José Riço Direitinho
José Riço Direitinho na Ventspils House (2007). Foto Lydia Beuman
Já para Miguel Palma, a perspectiva das residências artísticas é diferente. «A presença física é muito importante», sobretudo porque as múltiplas residências por si efectuadas representam a «presença em lugares onde passam pessoas que dificilmente se deslocariam a Portugal», sublinha este artista plástico de 45 anos, «um nome significativo da geração que apareceu na cena artística portuguesa no início da década de 1990» (Miguel Wandschneider).

«O que me levou a sair daqui foi a curiosidade em relação a uma eventual boa recepção do meu trabalho fora do contexto nacional», acrescenta Palma, que, em 2007 esteve num dos mais reputados centros de acolhimento para artistas plásticos no Estados Unidos, o Location One, de Nova Iorque, a convite da própria instituição e com apoio do IC. «Pareceu-me que se poderia estabelecer uma proximidade entre o meu trabalho e os EUA, diferente da que se estabelece com a nossa realidade europeia. Também porque me assusta um pouco uma certa estagnação, quase visionária, de uma permanência em território nacional». «Foi uma excelente proposta que me estimulou e permitiu correr riscos que nem sempre são possíveis em Portugal», acrescenta.

Para a sua residência em S. Paulo, Jorge Louraço Figueira foi movido pela «curiosidade sobre um dos outros territórios de Língua Portuguesa, que funciona, nalguns aspectos, como uma projecção da Cultura Portuguesa e, noutros, como um campo de possibilidades inesperadas. É também uma maneira de nos conhecermos através do olhar do outro».

Numa outra área, o escritor José Riço Direitinho, 43 anos, encara as suas residências literárias de forma bastante pragmática: «a razão principal é o facto de ter o tempo todo para mim, para me dedicar só à escrita». «Estando em Lisboa, ou estando em casa, há sempre coisas que tenho de fazer ou que eu invento para fazer, para não estar a escrever», refere este autor que fez a sua estreia literária em 1992 com um livro de contos, A Casa do Fim. «Estando numa residência quase que me obrigo a escrever», sublinha. «Tem a ver com uma disponibilidade mental que é muito maior».

Destas diferentes formas de estar nas residências surgem resultados e avaliações diferentes daquilo que nelas foi importante.

A residência de Jorge Cruz em Bad Arolsen, na Alemanha (apoiada pelo IC), em 2007, numa zona rural isolada a 80 km de Kassel, representou, segundo as suas palavras, «mais um incremento importante» no seu percurso artístico. O projecto inicial foi fortemente estimulado pelo facto de naquele período de 40 dias estar a decorrer em Kassel a quintenal Documenta, «uma das maiores feiras de arte do mundo». «Foi muito positivo conseguir expor o resultado do meu trabalho [uma série de 30 desenhos em papel e uma instalação] numa das muitas exposições ‘satélite\' da feira. O número de visitantes da exposição foi uma surpresa, bem como a atenção da imprensa».

Miguel Palma, que produziu em Nova Iorque «um trabalho de grandes dimensões» (Deep Breath), envolvendo o vídeo e a escultura,vê como «os momentos mais interessantes» da sua residência no Location One «as visitas regulares de comissários, artistas e de galeristas». Estes agentes culturais, provêm, segundo ele, «de todo um meio muito curioso e interessado em saber o que faz um artista residente numa cidade como NY, e que traz, regra geral, sempre algo de novo para aquele contexto artístico». Balanço? «Alguns dos contactos estabelecidos originaram convites para integrar novos projectos, o que consequentemente dá uma maior visibilidade ao meu trabalho».

A recompensa para quem sai é notória. João Simões enumera o resultado das suas residências em Nova Iorque (NI): exposições realizadas na DCA Gallery (NI), White Box (NI), White Flags (Saint Louis, San Francisco) e em preparação na Emily Harvey Foundation, NI e no WPS (Miami), conferências nas universidades de Columbia e de Cornell (NI) e na White Box, professor convidado (Faculdade de Arquitectura de Milão e ENS Paysage (Versalhes) um projecto de edições/bibliotecta com vários artistas para o novo espaço da White Box, na Bowery (Nova Iorque) e a direcção da TEST - um novo centro de arte contemporânea em Lisboa, Alcântara. «Isto são apenas alguns resultados lineares».

Espaços diferentes

Jorge Cruz
Jorge Cruz, Tríptico ciclo, pintura. Foto Fernando Sousa
José Riço Direitinho rejeita que haja um «reflexo directo» das residências na sua produção escrita. Mas admite que alguma coisa fica. «Obviamente há sempre, há sempre qualquer coisa que nós escrevemos lá que não escreveríamos aqui», diz. E evoca mesmo as Histórias com Cidades (2001), uma colectânea de contos escrita no ano e meio que viveu em Berlim com uma bolsa do Berliner Künstlerprogramm. «São contos, que se passam todos em cidades europeias, onde não há nenhuma referência a Portugal, nenhuma referência a Lisboa. Esse livro só poderia ter sido escrito em Berlim, ou em Estocolmo».

Em Berlim, Riço Direitinho ficou num apartamento, uma situação distinta da residência de um mês que efectuou em 2007, com o apoio do IC, na Letónia, na Ventspils House, uma casa onde estão sempre sete/oito escritores e tradutores, sobretudo do Leste Europeu, acolhidos por uma, duas semanas ou um mês. Foi uma experiência «enriquecedora», segundo o escritor, que aí contactou com «pessoas com diferentes experiências de escrita, com diferentes modos de entender as coisas e de publicar». A estadia teve mesmo situações inesperadas, como a participação «obrigatória» num desfile, «uma coisa meia estalinista ainda», em que todas as organizações de Ventspils fazem uma parada anual pela avenida principal.

O espaço que acolhe os criadores «diverge de residência para residência», considera Miguel Palma, mas tanto os artistas como as equipas que organizam estas residências, constroem de facto «um ambiente propício à criação artística». No caso do Location One, Miguel Palma sobreleva a «imensidão de oportunidades» e «possibilidades» abertas pelos contactos com comissários, artistas de outras partes do mundo e «críticos que escrevem a nível internacional».

João Simões afirma que os programas do ISCP e do PointB, em Nova Iorque, «são aparentemente distintos». «O ISCP (que mudou para Brooklyn) tem um programa de visitas de comissários e galeristas ao atelier e o PointB não tem um programa definido: é um espaço de trabalho para quando se tem exposições marcadas e projectos a desenvolver e apresentar em NI - é o momento posterior ao ISCP, acho - mas ambos são idênticos na sua estrutura ADN; criam a possibilidade de trabalhar, investigar e desenvolver novo trabalho e revelam novas redes sociais».

 

Depoimentos na Íntegra

pdf João Simões - «Mudar de espaço é fundamental»

pdf Jorge Cruz - «O que é importante é mudar»

pdf Jorge Louraço Figueira - «Conhecermo-nos através do olhar do outro»

pdf Luís Nobre - «Perceber o que é ser português e cidadão do mundo»

pdf Miguel Palma - «Uma imensidão de oportunidades»