Leitorado do IC na Universidade de Belgrado: Escolha «passional»

O leitorado de Língua e Cultura Portuguesa do Instituto Camões (IC) na Universidade de Belgrado (UB), Sérvia, é ainda um ‘bebé’. Nasceu apenas em 2005, quando André Cunha o abriu. Mas a ‘criança’ tem crescido bem e, segundo ele, é certamente «um dos leitorados que, em números, apresenta um dos crescimentos mais rápidos» na rede do IC

No ano lectivo de 2008/2009, cerca de 180 alunos estiveram inscritos nos dois anos da graduação de Língua Portuguesa na Faculdade de Filologia da Universidade de Belgrado, um pouco mais de uma centena no 1º ano. E, no entanto, o Português, depois de ter subido um ‘degrau’ em 2007/2008 e já ter deixado de ser um mero curso livre, é ainda apenas uma cadeira opcional no currículo das licenciaturas do modelo de Bolonha da UB, apesar de já contar com mais dois docentes, Joana Câmara, que tem alternado com André Cunha no leitorado do IC e se encontra presentemente em funções, e Mariana Faria, esta última ao abrigo de um protocolo entre a UB e a Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

De acordo com o modelo seguido na Faculdade de Filologia da UB, o Português pode ser escolhido como idioma opcional de qualquer uma das licenciaturas de línguas. Não há a obrigação de estudar línguas complementares no âmbito de uma determinada formação, explica Joana Câmara. «Qualquer pessoa pode escolher qualquer combinação de línguas. Podemos ter estudantes de albanês-português, norueguês-português, etc.», acrescenta André Cunha.

Prova do interesse que existe está o facto de o curso de Português ser o único numa universidade estrangeira que conta, desde Fevereiro último, com o apoio de um centro de língua portuguesa do IC no próprio estabelecimento universitário sem que exista ainda, como seria de esperar, uma licenciatura em Língua Portuguesa, sublinha André Cunha.

A licenciatura está obviamente no horizonte das intenções, mas André Cunha é extremamente reservado no que toca a previsões sobre quando isso acontecerá. «Não está em perspectiva», diz. «Há muito trabalho de casa a fazer primeiro», acrescenta, lembrando que é preciso formar previamente os professores e criar um corpo docente local «com qualidade», razão pela qual o protocolo entre o IC e a UB, que criou o curso de Português e que aponta para a criação da licenciatura, prever a atribuição pela parte portuguesa de bolsas de mestrado em Portugal. Em 2009/2010 há três bolseiros sérvios nessas condições. Seja como for, André Cunha é peremptório: «É preferível levar cinco ou sete anos e abrir uma licenciatura boa do que demorar dois e abrir uma licenciatura média».

Para já, no presente ano lectivo, abriram cursos livres de Português nas universidades sérvias de Novi Sad e Kragujevac, que registaram uma verdadeira «explosão» de inscrições. Como resultado deste «interesse enorme, acima das expectativas mais optimistas», no dizer de André Cunha, o total de alunos de Português na Sérvia, este ano, «ultrapassa claramente os 300».

Mistério

O interesse pela língua portuguesa entre os jovens sérvios não é fácil de explicar, como admitem André Cunha e Joana Câmara. «É uma escolha passional. Não é uma escolha pragmática», diz a leitora do IC, acrescentando que a «musicalidade» da língua é um factor de atracção e o universo dos seduzidos pelo idioma transcende «as pessoas das línguas», como ela testemunhou quando alguém que vendia tupperwares se candidatou a aprender Português. Esta tónica é reforçada pelo leitor alternante. A escolha do Português, diz, «nunca pode ser ditada por questões racionais ou de emprego. Não há interesse estratégico [para os sérvios] em falar português. Têm mais interesse em falar italiano, alemão, russo…». O peso do Brasil, ou mais particularmente da música brasileira, tem também a sua importância. E acresce que a escolha de uma segunda língua é sempre mais fácil do que a primeira. Pode dar-se mais vazão ao sentimento. E se há coisa que os sérvios são é «um povo de afectos», diz André Cunha.

O jornalista-leitor fala do impacto que um filme como Lisbon Story (1994), de Wim Wenders, teve na geração de sérvios que conheceu os bombardeamentos das suas cidades e viveu o fim das sanções da comunidade internacional ao seu país. Fala ainda do «fascínio excessivo» criado pela película «por uma cidade em que parecia viver-se tão bem» e que não se encaixava no padrão das cidades ocidentais consumistas, de uma Lisboa «com muita tradição e ligação à história e com os Madredeus…»

Ora, sublinha, «os Madredeus foram das poucas bandas europeias [a apresentarem-se num espectáculo a 28 de Maio de 2000] em Belgrado antes de Slobodan Milosevic [ex-presidente sérvio] cair», em Outubro do mesmo ano. «O facto de uma banda ir lá no tempo de Milosevic, isso provoca uma imagem e um sentimento de gratidão».

Claramente foi esse interesse difuso o responsável pela criação do curso de Português em Belgrado e pelo rápido alargamento do número de alunos na Universidade, considera André Cunha, um jornalista de formação, que iniciou a sua actividade profissional na TSF em 1998 e que por diversas vezes visitou a Sérvia em serviço antes de ser o primeiro leitor do IC em Belgrado.

O primeiro curso livre de Português, em 2005, foi antecedido em mais de um ano por um abaixo-assinado dos estudantes pedindo a sua criação, conta o antigo leitor. Provavelmente um caso inédito. De qualquer forma, «havia um interesse que era preciso explorar», explica André Cunha. E houve depois uma conjugação de vontades, entre o IC e a faculdade sérvia, protagonizada esta pelo actual vice-decano para as relações internacionais, Dalibor Soldatic, ex-director do departamento de Estudos Ibéricos da Faculdade de Filologia.

O apego dos estudantes sérvios pela aprendizagem da Língua Portuguesa é tal que acaba por não surpreender que André Cunha diga que a maioria dos 30 a 40 alunos que frequenta os cursos de Verão ministrados pelos leitores portugueses, que já vão na sua 4ª edição, seja constituída por aqueles que já estiveram a frequentar as aulas durante o ano escolar. «Os cursos livres têm um lado de paixão maior», diz o leitor. Mas há também uma outra razão que é a sua «componente mais cultural do que linguística», com uma forte participação de docentes e agentes culturais exteriores.

No curso de Verão deste ano, frequentado por cerca de 20/25 alunos («as Universíadas em Belgrado ‘roubaram’ alunos aos cursos de Verão», diz André Cunha), participaram além das docentes Mariana Faria e Joana Câmara, Maria de Fátima Marinho, que abordou temas ligados à literatura, Francisco Nazareth, leitor em Sófia, que focou o cinema, Sofia Branco, jornalista, que apresentou uma reflexão sobre tradição versus direitos humanos em África, na sequência do seu trabalho sobre mutilação genital na Guiné-Bissau, e o escritor angolano Ondjaki. Tendo-se deslocado à capital sérvia para o lançamento da tradução para servo-croata do romance Bom dia camaradas, Ondjaki encerrou o curso de Verão, partilhando com os estudantes algumas das estórias da ‘sua’ Luanda. Também o jornalista e escritor Pedro Rosa Mendes, de passagem por Belgrado, interveio no curso, falando da sua experiência de África e da sua obra.

Os cursos de Verão não deixam mesmo assim de representar uma sobrecarga para a equipa docente, sobretudo porque André Cunha considera que «manter o nível de qualidade todos os anos é quase impossível». Assim está previsto que os cursos de Verão passem a ser de dois em dois anos.

Sobrecarga que não se esgota aí. Nos últimos dois anos, o Teatro da Cidade Branca (Belgrado) esteve no festival de teatro universitário dos leitorados promovido em Portugal pelo IC, com o apoio da Câmara de Oeiras. Na criação colectiva Pouca-Terra-Tanta-Terra, procedeu a uma «recolha de universos simbólicos que permitissem edificar uma ponte de diálogo entre as culturas sérvia e portuguesa», refere Joana Câmara. Por que no fundo é sempre dessa ‘ponte’ que se trata.

André Cunha rejeita responder à tradicional ‘pergunta de bolso’ de como se vêem reciprocamente portugueses e sérvios. Gosta mais de falar de balcânicos e ibéricos, habitantes de duas penínsulas europeias. «Estamos a falar de uma região [os Balcãs] em que a identidade nacional está tão ferida ao longo da História que é mais interessante olhar para as pessoas e para as cidades do que para as fronteiras», diz.

Joana Câmara regista a «surpresa positiva» do seu encontro com a Sérvia. Diz que foi recebida numa «passadeira vermelha». Não tem uma explicação para o seu agrado com o país, mas diz que «essa ausência de explicação é a melhor explicação». Das pessoas sublinha a sua espontaneidade e o carácter directo. «As coisas correram bem com os alunos» e nem mesmo «algum caos» na universidade toldou uma «experiência muito positiva».

«Fomos sempre muito acarinhados. É um factor a que não estamos habituados. Lá as pessoas valorizam o professor», diz André Cunha. Esperam que seja uma espécie de «super-herói», acrescenta. Dessa pressão, que Joana Câmara considera fortemente responsabilizante, André Cunha afirma que se trata de «uma violência boa»

 

Encarte Camões no JL n.º 145

Suplemento da edição n.º 1021, de 18 de novembro a 1 de dezembro de 2009, do JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias