A 16 de Janeiro de 2009 assinalam-se os 80 anos da fundação da Junta de Educação Nacional, organismo na origem de uma linhagem de instituições que desembocaram na criação do Instituto Camões (IC), em 1992.
Número 133 · 17 de Dezembro de 2008 · Suplemento do JL n.º 997, ano XXVIII
Consciente do valor desta herança e atento à importância de a conservar, partilhar e divulgar, o IC decidiu promover, em colaboração com o Instituto de História Contemporânea, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, uma série de iniciativas de investigação, tendo nomeadamente em conta a sua actividade fundamental no domínio da política cultural externa portuguesa no período contemporâneo.
O artigo abaixo publicado é a primeira parte de um texto que dá conta dos primeiros resultados desse trabalho e cuja segunda parte será publicada no próximo número do suplemento do IC no Jornal de Letras.
80 anos de Cultura e Ciência
A história do Instituto Camões remonta a 1929 e à criação da Junta de Educação Nacional (JEN). Era ministro da Instrução Pública do governo da Ditadura Militar chefiado pelo general José Vicente de Freitas, Gustavo Cordeiro Ramos que, anos mais tarde, se referiria às razões da criação da Junta nestes termos: A criação daquele organismo obedeceu a um duplo objectivo: se por um lado procurávamos quebrar o isolamento que nos últimos séculos nos afastara do convívio íntimo e permanente com os mais autorizados centros de cultura no estrangeiro, condição imprescindível do levantamento do nível mental da Nação, aproveitando o que lá de fora nos poderia interessar, sobretudo nos métodos de investigação e nas esferas da actividade científica, em que o nosso atraso técnico se mostrasse mais acentuado (...); por outro iam-se proporcionar meios de trabalho aos estudiosos e facilitar-lhe o aperfeiçoamento, a expansão e propaganda séria do seu labor, não só internamente, mas extra-muros pátrios, como pioneiros e promotores da cultura universal.1
Tal como ficava disposto no decreto da sua criação (nº 16 381, de 16 de Janeiro de 1929), a Junta, cuja organização e missões encontraram inspiração no modelo espanhol (interessante, de resto, o trabalho de estudo e análise das instituições existentes noutros países com idênticas funções), surgia como um organismo permanente e autónomo, integrado no Ministério da Instrução Pública. Estavam-lhe cometidas, entre outras, as funções de fundar, melhorar ou subsidiar instituições destinadas a trabalhos de investigação e propaganda científica; organizar e fiscalizar um serviço de bolsas de estudo; promover o intercâmbio cultural, a expansão da cultura portuguesa...
Os tempos foram passando, alterando-se profundamente os contextos políticos, económicos, sociais... quer em Portugal quer no Mundo. A Junta, poucos anos depois, em 1936, já em pleno Estado Novo, foi transformada em Instituto para a Alta Cultura, título que manteve até 1952, quando a sua designação foi alterada para Instituto de Alta Cultura. Viria a ser extinto, já depois do 25 de Abril, e criado em sua substituição o Instituto de Cultura Portuguesa. Sucedeu-lhe, em 1981, o Instituto de Cultura e Língua Portuguesa que, em 1992, foi substituído pelo actual Instituto Camões (IC).
Numa perspectiva histórica, compreende-se a dimensão e importância destes sucessivos organismos, aos quais, com o passar dos tempos, foram sendo cometidas responsabilidades quer na política de apoio à investigação científica - missão que actualmente cabe à Fundação para a Ciência e Tecnologia - quer na política de promoção do desenvolvimento cultural, do aperfeiçoamento artístico e das relações culturais externas.
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Antes da criação da JEN, tentando acompanhar o que ia ocorrendo noutros países e obedecendo ao espírito da reforma universitária de 1911, a I República assistiu ou foi animando diversos projectos, propostas, debates e fez até vários ensaios de organismos dedicados à promoção e organização da ciência e da cultura, protagonizados por cientistas, engenheiros, pedagogos e, em alguns casos, iniciativas de políticos, para quem a condição fundamental do progresso económico e social do País residia no seu desenvolvimento cultural e científico [sublinhado do editor].
Muitos destes projectos ficaram pelo caminho (como a ‘Junta de Orientação dos Estudos\', criada por decreto de Dezembro de 1923); no entanto, ficou um importante acervo do ponto de vista do pensamento e da cultura que antecipava nitidamente realizações posteriores.
Com a eclosão do Golpe de Estado e a implantação da Ditadura Militar, em 16 de Janeiro de 1929 foi publicado o decreto que constituiu a JEN, abrindo caminho ao lançamento de um conjunto de medidas de apoio à investigação científica, aperfeiçoamento artístico e expansão da língua e cultura portuguesas. Era ministro da Instrução Pública Gustavo Cordeiro Ramos, filólogo e professor universitário, figura largamente inspirada pela cultura e modelos pedagógicos alemães, e já então merecedor da confiança política de Salazar.
Entre as prioridades da Junta, desenhou-se desde o início um modelo de "expansão cultural", onde o ensino da língua e literatura portuguesas assumiu um papel central, quer pela natureza estratégica no acesso às academias estrangeiras quer pela função política a que estaria associada. Assim o confirmou um dos primeiros relatórios de actividades da JEN, onde se defendia, nomeadamente: A porta da nossa entrada nas Universidades estrangeiras é a do ensino da língua e da literatura portuguesas. Ainda que o não fosse, deveria ser esse ensino uma das maiores preocupações da Junta de Educação Nacional, porque o conhecimento da língua de um país é o mais poderoso elemento da sua propaganda e da valorização da sua cultura.2
No quadro dos apoios à investigação, a acção da JEN obedeceu a um plano de conjunto que contemplou a atribuição de bolsas em Portugal e fora do País, subsídios a centros de estudos, laboratórios e publicações e, desde 1937, a inventariação e publicação de bibliografia científica. Este plano de apoios, como referiria anos mais tarde Amândio Tavares, servia (...) o mesmo objectivo: formar investigadores, proporcionar-lhes meios de trabalho (...) e colocá-los em condições de poderem consagrar à investigação a maior parte, senão a totalidade do seu tempo e das suas forças.3 Havia mesmo, em algumas situações, a intenção de preparar técnicos que viabilizassem a integração do conhecimento técnico-científico nos sectores produtivos nacionais.
O processo de consolidação institucional do Estado Novo foi-se reflectindo no papel da JEN, transformada em Instituto para a Alta Cultura em Maio de 1936, na sequência da reforma que criou o Ministério da Educação Nacional. Esta mudança significou, desde logo, a perda de autonomia do IAC.
Havia, sem dúvida, uma lógica de centralização que vitimou o próprio Instituto, que foi colocado como 7.ª secção da recém-criada Junta Nacional de Educação. Esta reforma foi motivo de longas polémicas e críticas da direcção4, que só viu a autonomia do IAC ser recuperada em 1952. Contudo, o que o IAC ganhou então em autonomia administrativa, não seria recuperado em termos de recursos e de capacidade financeira.
Quem eram, afinal, os dirigentes e representantes que, durante o Estado Novo, deram vida a estes organismos? Na sua maioria eram ‘homens de ciência\', médicos, professores universitários, pedagogos, engenheiros, cuja intervenção pública recuava aos tempos da República. Entre presidentes, vogais, presidentes de comissões da JEN, surgiram figuras como os médicos Marck Athias, Simões Raposo e Celestino da Costa, o filólogo Agostinho de Campos e o engenheiro António Herculano de Carvalho.
Nas décadas seguintes, também ocuparam a presidência do IAC outros representantes da actividade científica e cultural portuguesa, como os engenheiros e antigos bolseiros Manuel Abreu Faro e António da Silveira, ou a filóloga Maria de Lourdes Belchior Pontes, em tempos leitora de português em Paris. Em 1976, a presidência do IAC era ocupada pelo geógrafo Ilídio do Amaral. Foi nessa altura que, em pleno processo de transição democrática, o Instituto viria a ser transformado em Instituto de Cultura Portuguesa (ICAP).
Acrescente-se que a direcção da Junta contou sempre, de forma estratégica e desde 1929, com elementos da confiança política da Ditadura e do Estado Novo. Para além de Cordeiro Ramos, que assumiu a presidência do IAC entre 1942 e 1964, e de tantos outros vogais como Marcelo Caetano, José Pequito Rebelo ou José Maria Rodrigues, conta-se ainda Francisco de Paula Leite Pinto, que não deixou de abraçar claramente a causa do Estado Novo, embora desempenhasse um papel mediador e de assinalável influência no âmbito da comunidade científica portuguesa e no desenvolvimento desta.
Instituto de História Contemporânea (http://www.ihc.fcsh.unl.pt/ )
Maria Fernanda Rollo (coord.), Inês Queiroz, Tiago Brandão, Ângela Salgueiro, José Pereira
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(1) Gustavo Cordeiro Ramos, Objectivos da Criação da Junta de Educação Nacional, Lisboa, 1951, p. 7-8
(2) Junta de Educação Nacional. Relatório dos trabalhos efectuados em 1931-1932, Tip. da Seara Nova, Lisboa, 1933, p.17.
(3) TAVARES, Amândio, O Instituto para a Alta Cultura e a investigação científica em Portugal, I.º Vol., Instituto para a Alta Cultura, Lisboa, 1951, p.12.
(4) RAMOS, Gustavo Cordeiro, Objectivos da Criação da Junta de Educação Nacional (Actual Instituto para a Alta Cultura). Alguns aspectos do seu labor, Instituto para a Alta Cultura, Lisboa, 1951, pp. 29-30.