Número 139 · 3 de Junho de 2009 · Suplemento do JL n.º 1009, ano XXIX
Ciclo entre Partidas e Chegadas
Pouco mais de nove meses foi o tempo que o ciclo entre Partidas e Chegadas levou em itinerância pelos países africanos de língua oficial portuguesa e pelo Brasil, desde que começou a sua ‘viagem’ em São Tomé e Príncipe, integrado na programação da Bienal de Artes ali realizada em Julho de 2008, até à inauguração da última etapa em Luanda, no Centro Cultural Português, coincidindo com as comemorações dos 35 anos do 25 de Abril, tendo passado entretanto pela Praia, por Maputo e por Brasília.
O ciclo, na realidade uma exposição de artes plásticas, intitulada Deslocações, e uma mostra de cinema documental, unidas pela temática dos ‘fenómenos migratórios’, nasceu especificamente por iniciativa do Instituto Camões (IC) para ser apresentado em Bruxelas, no Comité Económico e Social Europeu durante a Presidência Portuguesa da União Europeia, no segundo semestre de 2007, um projecto «extremamente gratificante» no dizer da co-curadora Lúcia Marques, porque aqueles que o conceberam «de raiz» – para além de Lúcia Marques, para as artes plásticas, Nuno Sena, responsável pela parte do cinema – tiveram «grande liberdade na escolha dos seus conteúdos».
O objectivo institucional inicial, segundo Lúcia Marques, foi «actualizar o conhecimento do que se está a produzir a partir de Portugal ou com ligação ao país», mostrando ao «público residente ou de passagem por Bruxelas uma nova geração de artistas portugueses e produção documental também ela muito recente».
A co-curadora refere que «os filmes escolhidos foram produzidos entre 2001 e 2006, e os trabalhos dos artistas também foram realizados entre 2005 a 2007». No que lhe diz respeito, Lúcia Marques escolheu os trabalhos dos quatro jovens artistas portugueses a partir de exposições que deles tinha visto: o vídeo do José Carlos Teixeira nos Prémios EDP em Coimbra; as caixas de luz do André Cepeda, a partir da exposição que ele apresentou na Galeria Solar-Arte Cinemática em Vila do Conde; as fotografias do Edgar Martins a partir da exposição individual feita na Galeria Graça Brandão em Lisboa; a série da Tatiana Macedo a partir da exposição de finalistas do primeiro Curso de Fotografia do Programa de Criação e Criatividade Artística da Fundação Calouste Gulbenkian.
Na parte cinematográfica, as películas seleccionadas por Nuno Sena foram A Fotografia Rasgada e O País Aonde Nunca se Regressa (ambas de José Vieira, 2001 e 2006), Lisboetas (Sérgio Tréfaut, 2004-2005), À Espera da Europa (Christine Reeh, 2006), Pátria Incerta (Inês Gonçalves e Vasco Pimentel, 2006), Lusofonia, a (R)Evolução (Red Bull Music Academy, 2006) e Bien Mélanger (Nicolas Fonseca, 2006).
Foi pois esta vontade de «actualizar» a percepção de Portugal no exterior que, no dizer de Lúcia Marques, explica a decisão da itinerância do ciclo por outro contextos, «considerando que o enfoque do projecto privilegiou de modo assumido, desde a sua raiz, uma geração de artistas no activo já num contexto pós-25 de Abril, isto é, num contexto de pós-descolonização, sendo por isso particularmente importante fazê-lo viajar por estes países com quem Portugal tem um passado histórico colonial, de modo a podermos reactivar ligações com esses países e com as gentes baseados em novas premissas».
O estabelecimento de um relacionamento em novas bases é «mais fácil» para a nova geração de criadores presentes no ciclo e na qual Lúcia Marques se insere, do que para «a geração dos nossos pais», diz. «Sem esquecer o domínio colonial», a nova geração «é talvez a primeira com condições» para «criar novos laços», «sem o trauma da geração anterior».
«Há muito desconhecimento mútuo entre Portugal e os vários países por onde o ciclo entre Partidas e Chegadas passou, e por isso é que o projecto foi tão bem recebido em cada lugar: foi uma ‘lufada de ar fresco’ na relação entre países com uma pesada ligação histórica de domínio, de exercício de poder», conclui Lúcia Marques O sul multiculturalA experiência concreta da itinerância de um conjunto de criações que fazem uma declinação vista a partir de Portugal dos fenómenos migratórios, permitiu contudo a Lúcia Marques aperceber-se de dois fenómenos: por um lado, «não é só a Europa que se está a tornar multicultural», e por outro, em todo o lado, «devido à globalização, e muito graças à Internet, os artistas e realizadores de cinema estão a trabalhar com linguagens e soluções formais muito semelhantes ou pelo menos com muitas preocupações em comum».
«Os países por onde o projecto viajou estão a começar a lidar com uma população cada vez mais diversificada e a sentir que já não são só um país de emigrantes mas também receptor de imigrantes, como aconteceu também com Portugal há bem pouco tempo!», afirma. Refere os casos de São Tomé e Príncipe, onde «há uma circulação crescente de investidores angolanos e nigerianos», de Angola, onde «os portugueses começam a ser vistos pela primeira vez como imigrantes, notando-se o desespero de muitos que partiram do Porto, Coimbra, Lisboa, para procurar um futuro melhor em Luanda ou noutros pontos do país», e do Brasil – «o português também continua a ser associado a uma imigração pouco qualificada, com poucos estudos, e por isso diferenciada, por exemplo, dos franceses ou dos alemães».Por tudo isto, Lúcia Marques rejeita que se possa dizer que o projecto se destinou apenas à «comunidade lusófona», seja em Bruxelas, seja nas outras paragens em que o ciclo foi apresentado. «Se considerarmos o universo dos portugueses que vive em cada uma das cidades onde o projecto foi apresentado, podemos mesmo dizer que tivemos um público muito misturado: quer portugueses residentes nestas cidades, quer população local, quer transeuntes. Em Cabo Verde cheguei mesmo a fazer uma visita guiada a um grupo composto por pessoas nascidas na Rússia, China, Itália, Espanha, Nigéria!»