Olhares e Experiências: Outros Territórios
Olha-se para as idades e percebe-se. Com raras excepções, nasceram pouco antes ou pouco depois da independência de Moçambique, em 1975. Foram literalmente os «filhos da revolução». Cresceram no seu período áureo e tornaram-se adultos quando ela acabou e a paz foi reencontrada a partir de 1992.
Número 123 · 12 de Março de 2008 · Suplemento do JL n.º 977, ano XXVIII
Os artistas plásticos que compõem o Movimento de Arte Contemporânea de Moçambique (Muvart), criado em 2002, apresentam-se novamente ao público de Maputo, a partir de 24 de Março, na Associação Moçambicana de Fotografia, por iniciativa Centro Cultural Português/Instituto Camões (CCP/IC), em mais uma exposição colectiva do seu já reconhecido (inclusive internacionalmente) percurso de «ruptura com o modernismo-colonial que imperou até ao final da década de 90 do século passado» (António Pinto Ribeiro dixit) naquele país da costa oriental africana.Assistiram (por dentro? à distância, devido à idade?) à tentativa de Samora Machel de tornar Moçambique um país "diferente" no mundo em desenvolvimento. Foi essa demanda que permitiu à maioria deles estudar na Escola Nacional de Artes Visuais (ENAV) de Maputo (onde hoje alguns são professores) - criada em 1983 e pejada de docentes cooperantes oriundos da Bulgária, Chile, Cuba, Holanda, Inglaterra, Itália, Polónia, Portugal, URSS -, e a uns poucos irem depois estudar no estrangeiro (RDA, URSS e também Brasil e Portugal).
Mas, já como adultos, tiveram de se confrontar com outros adultos há muito instalados e reconhecidos pelo mercado, entretanto triunfante, e pelos poderes estabelecidos. O ambiente, no entanto, fervilhava desde o começo dos anos 90 com novos artistas plásticos, que «de forma mais ou menos isolada» procuravam «novas linguagens», alguns dos quais iriam desaguar no Muvart, no dizer de Alda Costa, uma das principais especialistas de arte em Moçambique.
Quando lançaram o Muvart, os seus promotores «tinham alguns objectivos em comum - dar visibilidade [à] nova produção e [a] novos artistas que se apresentavam em diferentes contextos no país, aproximando-os à região e ao mundo», como dá conta Jorge Dias, talvez o principal teorizador do movimento e curador da exposição no CCP de Maputo.
Pretendiam também, ainda segundo ele, «criar uma alternativa para a produção e circulação da arte contemporânea» em Moçambique. «As vendas determinavam muitas das vezes a qualidade do artista. A reputação de alguns artistas era inabalável, tendo muitos servido as políticas institucionais como forma de orientação e direccionismo estético. Eram verdadeiros campeões de premiações nas exposições oficiais», explica num artigo publicado em 2006 no sítio artecapital este professor da ENAV.
A afirmação estética do movimento fez-se assim ao arrepio dos cânones de uma arte politicamente empenhada. «O Muvart traz propostas que dialogam com o panorama contemporâneo global, e acima de tudo reivindicam uma arte global e transnacional», diz Jorge Dias.
A exposição colectiva na capital moçambicana, em que participam nove dos membros do Muvart e uma artista plástica convidada, a pintora Sílvia Bragança (n. 1937), que, embora de uma outra geração, surge aqui com novas experiências ligando a matemática e a expressão plástica, vai decorrer sob o lema Olhares e Experiências: Outros Territórios.
Mas na linha de inovação que pauta o movimento, os trabalhos exibidos, alguns já mostrados noutras exposições, outros inéditos, reflectem «diferentes olhares da produção e intervenção artística de hoje» e chamam o público a apresentar-se «como uma das componentes que integram o trabalho artístico», refere Jorge Dias. «Parte dos trabalhos que serão apresentados têm um carácter participativo e interactivo com o público, num processo onde a obra ganha vida própria e nos possibilita uma visão ampliada do universo e da produção artística».
A exposição, que conta com nomes fundadores do Muvart, como Gemuce, Marcos Mutheywe, Celestino Mudaulane, Quentin Lambert e Jorge Dias, «evidencia pesquisas através de meios como assemblagem, objectos, desenho, pintura, escultura, fotografia e vídeo».
É esta diversidade de meios e suportes combinados, a par das temáticas, que aproxima radicalmente o Muvart da arte contemporânea ‘mundial\'. Até à geração do Muvart, a pintura (bebendo na tradição europeia) e a escultura em madeira (buscando a reabilitação da tradição local), com temas africanizantes, corporizavam fortemente a expressão plástica em Moçambique.
As características da produção plástica do Muvart não são só fruto da prática artística dos seus membros. Resultam também da sua postura teorizante em relação às artes plásticas. Como refere António Pinto Ribeiro, «o Muvart tem procurado exercer um trabalho de formação pedagógica pública através de um conjunto de acções de formação que têm acontecido a par das exposições colectivas e individuais».
Em Maputo vai agora ser dado mais um passo nessa caminhada.