5 perguntas a…
Margarida Calafate Ribeiro é investigadora-coordenadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e investigadora principal do projeto ERC Memoirs – Filhos de Impário e Pós-memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação. Com Roberto Vecchi, é responsável pela Cátedra Eduardo Lourenço na Universidade de Bolonha. Especialista em literaturas de língua portuguesa na sua relação com a história e a política, foi oradora no Seminário do Camões, I.P. de 2020
Qual foi a importância, no seu percurso, de cedo ter sido leitora do Camões em França e no Reino Unido?
Eu fui leitora do Instituto Camões de 1991 a 1993 na Universidade da Bretanha Ocidental em Brest e depois no Reino Unido na universidade de Hull, perto de York, no norte de Inglaterra, durante dois anos. Foi uma experiência muito rica e determinante na minha vida. Em França, o português era na altura uma língua muito ligada à emigração e, portanto, havia todo esse trabalho a fazer de mostrar que uma língua de emigração é uma língua de cultura, ou seja, que as pessoas que emigraram para trabalhos socialmente mais desclassificadas são portadoras de uma cultura e de uma língua. Os meus concidadãos, que os franceses viam como pessoas relativamente pobres e relativamente ignorantes, não o eram. Eram pessoas que não tinham uma habilitação em língua francesa, mas que tinham um potencial cultural e eram transmissores de uma cultura em casa, o que se via na sala de aula em confronto com os alunos franceses.
No Reino Unido, Hull é uma cidade muito particular. Mas fui muito bem recebida, muito bem acolhida e, embora o português tivesse um estatuto de opção, acho que conseguimos fazer um trabalho muito bom, que se tornou num espaço de grande aprendizagem para mim. Havia, por razões de protocolos dessa universidade, estudantes dos países africanos de língua portuguesa, nomeadamente moçambicanos e angolanos. Quando nos encontrávamos era uma alegria enorme e tudo se fazia a partir desse património comum que era a língua que nós partilhávamos, ali no norte de Inglaterra, todos cheios de frio e de neve.
Como é que desse encontro parte para Londres para estudar literatura e história numa perspetiva pós-colonial?
Em 1996 consegui uma bolsa de doutoramento no âmbito das primeiras políticas de Ciência do Professor Mariano Gago, ministro da Ciência, e fui para o King’s College fazer outro tipo de trabalho, na área da literatura e história colonial portuguesa, em que fui orientada pelo Professor Helder Macedo, a minha referência para sempre e pelo Professor Patrick Chabal, um grande professor de política, de história e de culturas africanas. Fiz uma tese que hoje em dia é um livro. Saiu em 2004, pela editora Afrontamento e chama-se Uma História de Regressos, Império, Guerra Colonial e Pós-Colonialismo. Fui ficando em Inglaterra até que recebi um convite do Professor Boaventura Sousa Santos para concorrer para ao Centro de Estudos Sociais (CES), para contribuir para a criação do primeiro doutoramento do CES, que é “Pós-colonialismos e cidadania global”, com o Professor Boaventura, o Professor António Sousa Ribeiro e a Professora Paula Meneses. Foram anos intensos, de imensa aprendizagem num centro marcado por uma prática interdisciplinar.
Como descreve a cátedra Eduardo Lourenço, na Universidade de Bolonha, que viria a surgir depois disso?
Tive sempre uma relação muito próxima com o Camões, em várias colaborações, mais ou menos pontuais, nomeadamente aquela que é a minha relação mais visceral ao Camões hoje, através da cátedra Eduardo Lourenço, com um patrono fantástico, sempre muito atento à nossa cátedra. É uma cátedra regida por mim e pelo Professor Roberto Vecchi, o titular, que se tornou numa plataforma de investigação, com projetos como o Memoirs – Filhos de Império e Pós-memórias Europeias, que tem financiamento do European Research Council e está sediado no CES, e muitos outros que fomos desenvolvendo. Temos também docência presencial através da cadeira de História da Cultura Portuguesa e, através da plataforma [e-learning] do Camões, temos dois cursos, a pós-graduação “Estudos Pós-coloniais: contextos, conceitos e vozes” e um outro curso, semestral, que se chama “Atlântico Sul”. Já formamos mais de cem alunos nestes cursos.
Por outro lado existe, também com o Professor Vincenzo Russo, da cátedra António Lobo Antunes em Milão, uma programação excelente de tradução e publicação de obras no âmbito da cultura portuguesa. O primeiro livro foi o Labirinto da Saudade e entretanto foram sendo publicadas traduções das Cartas de Fradique Mendes, Pepetela, Helder Macedo, um livro de ensaios com colegas do CES, Atlântico Periférico… É um projeto de longo curso, fundamental para que possamos trabalhar num ambiente em que muitas vezes os alunos ainda não têm uma competência em português suficiente para ler Eduardo Lourenço, António Lobo Antunes, etc.
No seu caminho pessoal e académico que reflexão foi sendo feita em torno do que é a língua portuguesa, de como evolui ou o que a compõe?
Múltiplas vozes, múltiplas culturas. É uma língua, como diz o Mia Couto, que tem uma plasticidade muito grande, que absorve e deixa-se absorver. Eu costumo dizer que o meu objeto de estudo é Portugal, a literatura e a língua portuguesas, mas para perceber isso eu tenho de ir a muitos outros lugares, porque o português é uma língua que não está só neste território europeu. Os 260 milhões [que falam português] na sua grande maioria, provavelmente, hoje em dia nem têm uma grande ligação com o território Portugal-Europa, mas vivem em português, porque é a sua língua, em muitas outras geografias, contextos, culturas. É uma língua de uma mestiçagem absoluta e é isso que lhe dá a grande riqueza. O grande elemento que resta do império, se quisermos, é nós conseguirmos comunicar todos na mesma língua. Parece-me interessante olharmos para a enorme potencialidade da língua, que vai não apenas para os espaços antigamente coloniais mais urbanos mas para muitos outros lados, para muito do interior. Estou a pensar, por exemplo, num livro fascinante do Ailton Krenak, que é um índio krenak brasileiro, e que publicou recentemente uma conferência que fez aqui em Lisboa, chamada Ideias para adiar o fim do mundo. É absolutamente fascinante que eu perceba aquilo tudo, porque está em português. Uma língua é sempre o espaço a partir do qual eu penso, a partir do qual eu sonho, e se me é possível sonhar de outras maneiras na minha própria língua, isso é imensamente rico, porque nem sequer tenho que fazer o esforço de tradução. Dentro da língua portuguesa eu tenho uma possibilidade de navegação absolutamente fascinante e o potencial disso em termos económicos, políticos e culturais, é muito grande e situa-se a Sul. Esta potencialidade que nós temos de estar na Europa e, por outro lado, estar de uma forma muito pujante a sul é muito interessante.
Que consequências vê nesta escala global da língua?
Penso na grande força que isso traz, penso no grande sonho que isso pode construir enquanto sociedades múltiplas a viver em paz e penso também numa enorme emoção que me comove. Comove-me estar no interior do Brasil e estar a falar na minha língua, estar lá em cima em Moçambique, em Nampula, e estar a falar na minha língua, ou no interior de Angola. Penso que Lisboa se está a transformar numa plataforma muito interessante a esse nível. Tivemos o “Próximo Futuro” da Fundação Gulbenkian, com programação de António Pinto Ribeiro, que foi isso mesmo: uma plataforma da vanguarda das artes e das culturas africanas e latino-americanas; temos o kuduro e todas essas musicalidades, e vemos como se está atento ao que se passa em Angola, em São Tomé, qual é o som que vem de Cabo Verde ou como os brasileiros veriam algo. Tudo isto está a acontecer em Lisboa através das diásporas africanas, das diásporas brasileiras, e anuncia algo de novo: um diálogo não subalterno e fraterno. Esse é o mundo que eu gostaria de deixar aos meus filhos.