Por Carlos Leone
Luiz Augusto Rebello da Silva (Lisboa, 1822-1871) foi um prolífico escritor, professor do Curso Superior de Letras (por recusa de Herculano) e homem público (sócio da Academia Real das Ciências desde 1854).
Publicou abundantemente sobre Literatura, e fê-lo de acordo com os padrões da sua época: desde a diferença primacial entre Poesia e Prosa até aos géneros dominantes entre o público seu coetâneo (Romance e Teatro), não hesitou em escrever História literária e política enquanto se ocupava dos acontecimentos do quotidiano (estreias, óbitos), sempre atento às adjacências ainda hoje usuais (Jornalismo e Politica). As suas Obras Completas (41 vols., Empreza de História de Portugal, Lisboa), datadas de1909, incluem também um estudo em três volumes sobre a Arcádia Portuguesa, uma Memória biográfica e literária acerca de Manuel Maria Barbosa du Bocage, bem como vários outros trabalhos em que a literatura é fundamental; em aprticular, Apreciações Literárias, uma recolha póstuma (em três volumes) feita pelos editores, de textos dispersos pela Imprensa da época, incluindo mesmo (no volume III) um estudo sobre o Infante D. Henrique que, os próprios editores o admitem, aí figura apenas por conveniência de paginação. Entre as apreciações, encontramos o cânone consensual, ou quase, das Letras portuguesas de meados de Oitocentos: Garrett (com quem debateu no Parlamento) e Herculano (com quem conviveu de perto na Biblioteca da Ajuda), Lopes de Mendonça (qua crítico) e já Camilo Castello Branco e Bulhão Pato.
Diferenciando Bocage dos seus seguidores e identificando no combate a estes a filiação de Garrett na escola de Filinto (sem aderir ao seu rigorismo linguístico), Rebello da Silva desenvolve toda a sua argumentação no sentido de o diferenciar dos seus antecessores locais e os colocar entre os seus congéneres europeus, chefes de fila do Romantismo nas várias línguas de cultura da Europa do século XIX, em particular Goethe. Esta contextualização de Garrett ocorre no âmbito de uma reavaliação da Literatura Moderna, valorizando o medieval, próprio da cultura nacional genuína e do seu específico génio linguístico, em detrimento da Literatura artificialmente clássica do Renascimento e do gosto neoclássico (também designado «escola francesa»). No caso português, isto significa:
A primitiva lírica portuguesa está nas cantigas dos Cancioneiros; nos solaus e rimances de Bernardim Ribeiro; ou nas coplas de Gil Vicente. Será aquela a linguagem e o sentir do povo de então? De certo é. O verniz, que lhe deu a corte, o reflexo aristocrático, que cega os olhos do poeta, a lisonja que lhe ri nos lábios, vem só à superfície; o fundo ficou o mesmo.
(I, 35)
É o caráter revolucionário e moderno da D. Branca de Garrett que importa salientar, até para melhor se perceber o que foi este nacionalismo literário: «D. Branca fez uma revolução, porque provou, com argumentos de arte, que só da nacionalidade pode viver a verdadeira poesia.» (p. 40). Como escrevera páginas antes: «D. Branca descende desta linguagem pura castelhana. O seu autor admirava, sem as copiar, as nevoentas idealidades do Norte.» (p. 15). Tal como se pode ler também em Lopes de Mendonça, o sentimento de nacionalidade faz-se a partir de uma pertença ao movimento cultural europeu, não da sua exclusão; a cultura dinâmica da Europa do Norte, protestante e capitalista, não se impõe à comunidade ibérica que a «linguagem pura castelhana» exprime, mas nem por isso é ignorada ou menosprezada.
Como era já igualmente nítido, a dificuldade nesta argumentação não se encontra no recurso aos conceitos correntes no pensamento da época mas na sua aplicabilidade ao caso português: disso mesmo dá conta o ensaio, a propósito da escassez de um público, mesmo se (ou além de) o que existe não se distinguir dos gostos vulgares de todos os públicos. Romântico numa sociedade pré-moderna, a Rebello da Silva resta usar o romantismo de Garrett, e acessoriamente o de Castilho e Herculano, contra os «abortos morais» da cena cultural romântica vigente e pródiga em sucessos junto das massas do século alumiado com os touros…
Os textos que compõem o segundo volume de Apreciações são bem mais diversos. Nele destacam-se os dois textos dedicados a Alexandre Herculano, «O monge de Cister» e «Escritores contemporâneos», não tanto pela sua dimensão no conjunto deste segundo volume mas pela equiparação do papel de Herculano na Prosa e na Ciência românticas ao de Garrett na Poesia e Dramaturgia. Outros autores são Mendes Leal, destacado da geração nova posterior a Garrett e objeto de cinco textos; Ernesto Biester; D. Maria Cândida de Carvalho; Matheus de Magalhães; Lopes de Mendonça. De importância claramente diversa, nestes textos merecem destaque os dedicados a Herculano e a Lopes de Mendonça.
Também o terceiro volume das Apreciações Literárias sofrerá os excessos de forma, mas serão os dos afetos excessivos. Ainda assim, de Lopes de Mendonça a Rebello da Silva e deste a Pinheiro Chagas encontramos em curso de (não) resolução as influências europeias na cultura portuguesa de oitocentos. De um iluminismo tardio a um romantismo limitado no reabilitar da pré-modernidade por um país em que esta nunca fora realmente abolida, até aos dias em que Chagas critica o realismo pela sua ambição falhada (e quantos no século XX não censuram justamente isso à geração de 70?), são os impasses de Portugal enquanto sociedade moderna que aqui surgem em clave literária.
Sociedade pré-moderna, com um «Império» fora do tempo da Europa imperialista em sentido próprio, a Portugal já começava claramente a sobrar a História, aquela que levará no século XX António Sérgio escrever a Jaime Cortesão sobre a necessidade de matar o morto que dá pelo nome de «Portugal histórico» e, mais perto de nós, Eduardo Lourenço a insistir na nossa «hiperidentidade». Nas Apreciações Literárias, Rebello da Silva dá conta desses impasses pela dificuldade, impossibilidade, em aplicar as categorias culturais da Europa do seu tempo, Romântica, ao seu objeto de apreciação, não tanto a Literatura como a Arte em Portugal.
A quantidade de História que sobrecarrega quase toda a crítica das Apreciações não é defeito do autor (ou, a sê-lo, é vício comum à época), embora se torne mais notória pela dificuldade em ater-se à crítica que pretende empreender, passe o ocasional apelo à benevolência do leitor. Mas nem por isso deixa de ter um fito: serve um programa estético que privilegia a Poesia sobre a Prosa, e cumpre uma função social, política, a exaltação nacionalista pela via linguística. Nesse fito enquadram-se igualmente a sua obra de ficção (Contos e Lendas) e de história (História de Portugal nos Séculos XVII e XVIII), bem como toda a enorme atividade pública que desenvolveu e que lhe valeu, nas Farpas de Eça e Ramalho, uma invulgar elegia. Sobre Rebello da Silva, consultar «Silva, Luís Augusto Rebelo da», por Hernâni Cidade, em Prado Coelho, J., dir., Dicionário de Literatura, vol. 4, pp.1024/5, Mário Figueirinhas Editor, Porto, 1997 (4ª ed.).