Exposição no Centro Cultural Português do Luxemburgo
Quando falamos da Obra Gráfica de Júlio Pomar estamos a referir-nos a uma realidade passível de diversas abordagens, unidas pelo facto de se tratarem em qualquer caso de peças artísticas resultantes de um processo de gravura e reprodução.
Número 126 · 4 de Junho de 2008 · Suplemento do JL n.º 983, ano XXVIII
É apenas uma dessas possíveis abordagens - talvez a mais lata, que perpassa toda a obra de Pomar - que vai estar patente no Centro Cultural Português/Instituto Camões (CCP/IC) no Luxemburgo, entre 12 de Junho e 10 de Julho próximos, numa exposição comissariada pela galerista Maria de Lurdes Ferreira, que colaborou com o já falecido arquitecto José Sommer Ribeiro na organização da exposição precursora sobre a Obra Gráfica de Mestre Pomar que, em 1998/1999, foi exibida na Maia, em Cascais (Gandarinha) e em Leiria (Arquivo Distrital), com uma passagem por Cantanhede a cargo da comissária da mostra que agora vai estar no Luxemburgo. Antes, apenas a exposição Gravuras 1956-63, em 1967 em Lisboa, nos 10 anos da Galeria Gravura, se equipara nos seus objectivos.
Aquilo de que não trata especificamente a exposição do Luxemburgo - e que teve ao longo dos anos várias mostras dedicadas -, confirma a comissária, é o que poderíamos rotular de Obra Gráfica literária, relativa às inúmeras ilustrações que o pintor e escultor português, hoje com 82 anos e a viver também em Paris desde 1963, realizou para edições ou reedições de obras literárias, nomeadamente em França. E, no entanto, é uma parte muito significativa da obra de Pomar, por nos reenviar de algum modo para o seu posicionamento político-literário. Uma selecção da Obra Gráfica literária, intitulada Umas Histórias - Litografias e Serigrafias de Júlio Pomar, que pôs em destaque o interesse do pintor por temas literários, esteve aliás patente de Março a Maio deste ano no Sardoal.
Segundo referia Sommer Ribeiro em 2003, Pomar ilustrou cerca de 30 obras, entre as quais destacou Pantagruel de Rabelais (1967), Catch (1965-66, que é acompanhado de um texto seu) e La Chasse au Snarck de Lewis Caroll. Mas outras há, como as ilustrações da Guerra e Paz de Tolstoi, só publicadas em 2003, com texto de João Lobo Antunes, ou as trinta pequenas pinturas a preto e branco para a versão de Aquilino Ribeiro de Dom Quixote de la Mancha, de Cervantes (1960), seguidas por outros trabalhos de escultura e pintura versando o mesmo tema, que culminam em 1997 no trabalho em quatro elementos D. Quixote e os Carneiros. Ferreira de Castro, nas reedições de Emigrantes (1966) e A Selva (1973), também contou com ilustrações de Pomar. Rose et Bleu (1978), poesia de Jorge Luís Borges traduzida para francês, idem. É igualmente bastante conhecida a sua série de ilustrações do poema Le Corbeau de Edgar Alan Poe (1986). Pintou ainda painéis de azulejo com desenhos de grandes poetas portugueses, como Camões, Bocage, Fernando Pessoa e Almada Negreiros.
Ao longo dos anos várias exposições de Pomar invocaram expressamente obras literárias, como a realizada, na Galeria Gravura em Lisboa, sobre D. Quixote (1960), os Desenhos para Pantagruel (1967, Lisboa), Lembrança de Bocage (desenhos) (1985, Setúbal), Pomar et la Littérature, (1991, Charleroi, Bélgica) Júlio Pomar - Os Aforismos Mágicos de António Osório e outros Livros de Poemas, (1998, Lisboa) e, de alguma forma, o Auto do Nascimento-Leituras da Carta de Pêro Vaz de Caminha, (1999-2000, Lisboa, Porto e Madrid), sem esquecer a série borgesiana sobre os Tigres.
Uma hipotética divisão entre Obra Gráfica literária e não literária seria contudo artificial, porque é pacífico que a vastíssima obra de Júlio Pomar mantém toda ela uma estreita relação com a literatura, como sublinhava Sommer Ribeiro.
Ainda não se sabe se a exposição que vai estar no CCP/IC do Luxemburgo retomará a organização das mostras de 1998/1999, que agrupava as litografias e serigrafias de Pomar em cinco linhas temáticas - O Povo, A Festa, Eros, Animais Sábios, Ficções - com as peças escolhidas pelo próprio Pomar e pelo seu filho e crítico de arte Alexandre Pomar. Maria de Lurdes Ferreira admite que na escolha de Pomar surjam novas peças, sendo incluídos nas obras a exibir tanto originais como reproduções serigráficas e litográficas, destacando contudo o facto de algumas das obras de Pomar resultarem de um «retrabalho» sobre provas litográficas anteriores.
Em Pomar, nascido em 1926, é particularmente sublinhado o facto de, tendo sido um dos expoentes do Neo-realismo (a designação portuguesa do realismo socialista para uso da censura), alvo de perseguições por parte do regime do Estado Novo, ter passado por «um processo de autonomização relativamente a compromissos políticos e sociais», na expressão de Ana Filipa Ramos num texto para o Centro de Arte Moderna da Gulbenkian. Tal como o pintor mexicano Diego Rivera, que viu em 1933 o seu mural no Rockfeller Center em Nova Iorque ser removido por conter um retrato de Lenine, também Pomar teve a sua pintura mural no cinema Batalha, no Porto, realizada em 1946, coberta por cal às ordens do Governo do Estado Novo. Todavia, escreve Ana Filipa Ramos, nos anos 50, surge «uma série de obras em que o movimento assume um papel primordial, e as formas se tornam diluídas, mais abertas, fluindo do gesto e do impulso criador», anunciando formalmente essa autonomização.
Como outros artistas plásticos, para mais com a longa carreira que já possui - a sua primeira exposição individual data de 1947, com 25 desenhos, na Galeria Portugália, Porto -, Pomar conhece várias etapas/fases criativas, com uma especificidade posta em destaque por Ana Filipa Ramos: «É interessante observar em Júlio Pomar um percurso articulado, em que cada etapa recupera a anterior e anuncia já a seguinte, como um processo de constante metamorfose e alteração, um constante reconstruir e rever dos processos e técnicas utilizados. Assim, as colagens produzidas entre os anos de 1976 e 1978 parecem provir do ‘colorido recortado\' da(s) fase(s) anterior(es), para agora perderem em cromatismo o que ganham em textura.»
Neste pano de fundo genérico, a Obra Gráfica de Pomar não foge às suas diversas fases criativas, mas na sua origem, enquanto meio específico, estão preocupações político-culturais práticas. Num texto sobre a Obra Gráfica de Júlio Pomar para o álbum que acompanhou as exposições de 98/99, Rui Mário Gonçalves coloca o início desta no contexto da intensa actividade artística do pós-II Guerra Mundial em Portugal, no quadro do movimento antifascista. «Estas e outras manifestações colectivas, em que participaram numerosíssimos artistas (...), constituíram o caldo onde fermentou a vontade de aproximar a arte do povo. A arte da gravura foi surgindo, devido em grande medida a esta intenção democrática», diz o crítico de arte e professor universitário.
Pomar foi assim, em 1956, juntamente João Hogan, Rogério Ribeiro, Cipriano Dourado e outros, criador da GRAVURA - Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses, que permitiu, a ele e a outros, a aprendizagem técnica das artes da gravura e a edição de numerosos artistas plásticos, segundo relata Rui Mário Gonçalves.
É esta «democratização» da arte permitida pelas técnicas de reprodução, que Pomar declinou de forma variada ao longo da sua vida que vai poder ser vista agora, mais uma vez, no Luxemburgo.