Não foi bem um acaso a ida de José Saramago a Salzburgo em 1999. No ano anterior, o escritor português recebera o Prémio Nobel da Literatura e, conta Gilda Lopes Encarnação, «ele começou a visitar algumas cidades europeias, e não só». «E como na altura eu dava na Universidade de Salzburgo um curso teórico precisamente sobre a obra de Saramago, que tinha uma afluência enorme - aliás, devo dizer que o interesse dos alunos austríacos pelas obras dos autores portugueses, sobretudo contemporâneos, é elevadíssima -, pensei logo na altura que seria interessante convidar Saramago».
Número 134 · 14 de Janeiro de 2009 · Suplemento do JL n.º 999, ano XXVIII
Apesar de um pouco céptica quanto à possibilidade de levar o Nobel da Literatura a Salzburgo, pelos muitos compromissos do escritor, a então leitora do Instituto Camões (IC) contactou a Editorial Caminho, em que o autor tem publicado as suas obras. «Penso que foi um dos primeiros convites que veio daquele mundo de expressão alemã», diz. Passado pouco tempo, recebeu uma resposta de Saramago, «em que [o escritor] manifestava o seu grande interesse em visitar a Universidade de Salzburgo».
Para concretizar a visita e a realização de uma sessão de leitura da obra de Saramago, a qual, diz, «envolvia outro tipo de recursos», Gilda Lopes Encarnação teve a colaboração do IC, da Universidade de Salzburgo e do próprio município, «que disponibilizou umas instalações muito adequadas ao evento, uma vez que se tratava da nova residência do arcebispo de Salzburgo, um edifício emblemático da cidade».
Feita a divulgação da sessão com Saramago por um público «mais abrangente», através da edição de um programa e de um postal, «a afluência a estas leituras superou, devo dizer, as nossas expectativas», relata a ex-leitora.
«A sala era muito grande, mas estava a rebentar pelas costuras. Eram entre 400 a 500 pessoas que vieram de toda a Áustria e até do sul da Alemanha, da Baviera. Evidentemente, estavam os meus alunos de Português, os alunos do professor [Dieter] Messner», na altura Director do Departamento Ibero-românico da Universidade de Salzburgo. O próprio Messner, também conhecedor e admirador da obra de Saramago «foi o colaborador mais activo de toda esta iniciativa», ao lado da então leitora do IC.
«Quando Saramago entrou na sala teve uma ovação de pé, de todo o público. Ele próprio ficou muito surpreendido e uma das suas primeiras observações foi que estes países de expressão alemã eram dos poucos países que ele conhecia em que as pessoas pagavam para ouvir um escritor que falava uma língua que eles próprios não dominavam», como reconhece, aliás, Gilda Lopes Encarnação. «A maior parte do público não dominava o Português, a não ser, claro, os alunos de Português, que mesmo assim não terão seguido com todo o pormenor a leitura». No entanto, refere, «havia uma tradução consecutiva, feita por mim e por uma colega minha, também da área do Português».
Foram lidos extractos de O Memorial do Convento, do Ensaio sobre a Cegueira e de Todos os Nomes - seleccionados por Gilda Lopes Encarnação. «Saramago tinha-me dito na correspondência que eu poderia escolher os romances que muito bem entendesse e inclusive as passagens que desejasse que ele lesse - e, portanto, eu incidi a leitura sobre estes três romances, até porque não queria que também o momento fosse só preenchido pela leitura, mas que houvesse uma maior participação do público e, assim, perguntas, algum debate, como houve e bastante intenso».
De tal forma que a sessão, iniciada às 18:30, teve de ser interrompida cerca das 23:00. «Foi muito prolongado. As pessoas estavam interessadíssimas, bebiam as palavras de Saramago. É muito interessante, porque a atenção parecia de alguém que dominasse o Português», recorda a ex-leitora.
A leitura em alemão foi feita por um actor de Salzburgo que Gilda Lopes Encarnação convidou na altura e que «leu magistralmente». «Saramago disse na altura que nunca tinha ouvido a obra dele lida numa língua estrangeira com tamanho ênfase e com tão boa dicção».
Desta visita de Saramago a Salzburgo, Gilda Lopes Encarnação recorda ainda a «estupefacção» do escritor português com o manto branco de neve que tudo cobria durante a viagem entre Munique, onde a ex-leitora o fora buscar, uma vez que não existiam voos directos a partir de Lanzarote, a ilha das Baleares residência do escritor, e Salzburgo. O nevão, que caiu a 23 de Novembro de 1999 sobre toda a Alemanha e Áustria, obrigou mesmo a que Saramago pernoitasse na capital da Baviera.
«Foi bastante problemático porque Saramago já tinha deixado a sua casa em Lanzarote, já se encontrava ou em trânsito ou pelo menos no aeroporto. Mas consegui contactá-lo no balcão do aeroporto e dizer-lhe que deveria ficar em Munique. Só no dia seguinte é que o pude apanhar em Munique e lembro-me da sua estupefacção por aquele manto branco espesso de neve que cobria tudo, cobria a cidade de Munique, cobria a paisagem. Naquele dia na viagem de Munique para Salzburgo só se via um manto branco, quase que não se identificava nada do recorte paisagístico, o contorno da cidade».