Exposição de Richard Câmara em Madrid: Os desenhos nossos amigos

Quando é que uma trampa é uma armadilha? Quando é dita em espanhol. E quem (se) acorda em espanhol, não desperta, lembra-se em português. Um camelo, que já em português passava com dificuldade pelo fundo de uma agulha, é um engano espanhol. E assim poderíamos continuar indefinidamente, tal a quantidade de casos.

É este o ponto de partida da exposição Falsos Amigos, compostapor ilustrações do artista visual Richard Câmara (n. 1973, Bruxelas), residente na capital espanhola, que abre a 23 de Novembro na Pavilhão B da Universidade Autónoma de Madrid, no âmbito da VII Mostra Portuguesa a decorrer em Espanha. A exposição, que aí estará patente até 11 de Dezembro, transitará depois para a Universidade de Alcalá de Henares, entre 14 de Dezembro e 28 de Janeiro.

‘Falsos Amigos’ é a expressão coloquial já consagrada para aquilo que os especialistas designam por falsos cognatos ou vocábulos hetero-semânticos, isto é, a mesma forma, significados diferentes, que ocorrem com frequência entre línguas próximas, como é o caso do português e do castelhano.

Richard Câmara é um reincidente na VII Mostra Portuguesa de Espanha. Em 2008, apresentou em Madrid a exposição Pessoa POPular, que ilustrava quadras de sabor popular do poeta português Fernando Pessoa.

Desafiado pela organização da Mostra a apresentar um projecto que conjugasse a ilustração com a língua portuguesa, Richard Câmara diz que de imediato se lembrou dos «falsos amigos» e dos «caricatos equívocos que originam», muitos dos quais descobriu desde que foi viver em 2006 para a capital espanhola, onde é desde Outubro passado professor no Istituto Europeo di Design de Madrid (IED), mantendo contudo a sua actividade como docente convidado no Centro de Imagem, Estudos, Arte e Multimédia (CIEAM) da Faculdade de Belas Artes de Lisboa.

A exposição, explica o seu autor, é constituída por «cerca de três dezenas de desenhos originais a preto e branco, um para cada ‘falso amigo’», e pela edição de uma «obra serigráfica a 3 tintas, numa limitadíssima tiragem de 25 exemplares numerados e assinados», feita em colaboração com o conhecido estúdio gráfico Pepe Herrera.

Este feliz pai de uma madrilena de dois meses, de nome Mariana, e arquitecto de formação começou por se distinguir como cartoonista com colaborações na imprensa portuguesa (Diário de Notícias, Expresso, Independente, Público, Sol e mais recentemente no i) e espanhola (suplementos ‘Natura’ e ‘Magazine’ do diário El Mundo).

Mas, nos últimos anos, esta situação tem-se alterado, e a sua faceta de cartoonista parece estar agora em segundo plano, pelo menos para quem o observa através do seu blogue (www.richardcamara.blogspot.com). É uma situação que reconhece: «neste momento tenho menos colaborações como ilustrador ou humorista gráfico nos jornais e revistas, porque ando a desenvolver projectos para diferentes exposições, ao mesmo tempo que me dedico ao ensino». Mas avisa, «amanhã, talvez seja ao contrário...».

Na sua actividade docente relevam os cursos que regularmente ministra sobre a envolvente prática dos ‘diários gráficos’, que define como a utilização de «um caderno para esboçar ideias ou desenhar o que nos rodeia, usado com frequência por artistas como parte do seu processo criativo» e que se confunde por vezes com os cadernos de campo, livros de artista, diários de viagem...etc.

Enquanto diarista gráfico, integra a exclusiva comunidade em linha dos ‘urban sketchers’. Um ‘urban sketcher’, segundo Câmara, é «um desses autores gráficos que in situ desenha o que vê no seu diário gráfico». Ao todo são cerca de uma centena de correspondentes internacionais que publicam os seus desenhos no sítio www.urbansketchers.com, com o objectivo de «mostrar o mundo, um desenho de cada vez». Entre eles estão diversos autores portugueses – José Louro, João Catarino, com o qual Richard Câmara colabora nas oficinas de trabalho sobre diários gráficos, Eduardo Salavisa, autor de um livro sobre diários gráficos, Isabel Fiadeiro, que vive em Nouakchott, na Mauritânia, e Nuno Branco, um padre jesuíta a estudar teologia em Madrid.

«Julgo que, hoje em dia, os diários gráficos têm despertado um maior interesse em mostras de arte contemporânea e retrospectivas históricas, agora que os registos ‘íntimos’ e ‘transitórios’ têm ganho um acrescido valor. São elementos mais informativos do que as obras finalizadas, e estão presentes no trabalho de pintores, escultores, designers, ilustradores, arquitectos...etc.», explica Câmara.

Esta faceta dos diários gráficos, que de alguma forma incide no «momentâneo», no quase «fotográfico», parece contrastar com a abordagem eminentemente conceptual do trabalho de Câmara em Falsos Amigos e em Pessoa Popular.

Mas para ele não há contradição. «Estes dois registos são diferentes sobretudo porque obedecem a intenções, espaços e tempos de produção diferentes», diz. «Os meus diários gráficos são uma extensão do meu estúdio sempre que me desloco fora dele. Servem para treinar o olhar, soltar a mão, experimentar, errar e voltar a tentar, apurando soluções de representação que podem ou não vir a ser utilizadas mais tarde. Tudo o resto é feito dentro do meu estúdio e tem normalmente um processo de criação mais demorado, um desenvolvimento conceptual e gráfico a ‘fogo lento’, o que me permite calibrar com maior eficácia o resultado final».

Actualmente, Richard Câmara desenha, ilustra, faz Banda Desenhada e ensina «o que vou aprendendo em escolas como o Istituto Europeo di Design em Madrid, a Odd-School em Lisboa ou o Centro de Investigação e de Estudos Arte e Multimédia da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa». Mas para 2010 vai regressar à BD através de uma exposição retrospectiva, que em breve anunciará.

 

Encarte Camões no JL n.º 145

Suplemento da edição n.º 1021, de 18 de novembro a 1 de dezembro de 2009, do JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias