É sempre grande a tentação de escalpelizar, classificar, ordenar e arrumar, de preferência por esta sequência. Sossega-nos e deixa-nos em território reconhecível. Mas Ruy Duarte de Carvalho, dizem os que conhecem a sua obra, «é uma figura muito dificilmente classificável». É essa a ‘classificação\' de Ruy Duarte de Carvalho feita por José António B. Fernandes Dias, antropólogo, professor da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa e curador do ciclo que o Centro Cultural Português/Instituto Camões de Luanda promove esta semana na capital angolana, dedicado ao poeta/escritor/artista plástico/cineasta/ensaísta/antropólogo angolano nascido em Santarém, em 1941.
Número 135 · 11 de Fevereiro de 2009 · Suplemento do JL n.º 1001, ano XXVIII
«A obra de Ruy Duarte de Carvalho é muito multifacetada. É muito difícil de distinguir as diferentes disciplinas», afirma Fernandes Dias, que foi também o curador do ciclo que há um ano evocou a obra do criador angolano no Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa. E explica depois aquele professor universitário, que a si próprio recusa o rótulo de estudioso de Ruy Duarte de Carvalho, para se posicionar como «um amante/amador» da sua obra: «Ele na poesia é também um pensador. Quando escreve ficção, a ficção aproxima-se muitas vezes do ensaio ou do trabalho antropológico. Fez muita fotografia, que funcionava um pouco como registo de memória, mas que depois trabalhou em desenhos e de muitas maneiras. [...] E depois tem a sua obra cinematográfica, que é de facto muito significativa». Os seus escritos sobre cinema foram reunidos e lançados em livro quando do ciclo do CCB. «Portanto, ele é essas coisas todas. E às vezes é muito difícil nós conseguirmos arrumar essas coisas em caixinhas diferentes. Tudo se cruza e relaciona na obra dele».
Uma coisa Fernandes Dias garante: Ruy Duarte de Carvalho «é seguramente um grande poeta - eventualmente o poeta angolano mais significativo, um dos mais significativos da Língua Portuguesa. Sem dúvida». E sendo poeta, tem ao mesmo tempo «um trabalho antropológico extremamente inovador e muito interessante. A escrita antropológica dele é muito fascinante e muito inovadora». No entanto, avisa, «a leitura da obra escrita do Ruy Duarte de Carvalho é uma leitura trabalhosa. É um escritor denso. Não é uma leitura fluida. É uma leitura que dá trabalho. Agora, quando a gente se dispõe a ter esse trabalho e entra no espírito do que está a ler, é fabuloso, é fantástico!».
Sendo antropólogo de formação, Ruy Duarte de Carvalho chegou no entanto à antropologia académica já tarde, doutorando-se nos anos 80 pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris. Tendo em pequeno emigrado com a família para Moçâmedes, no sul de Angola, regressou a Portugal para estudar na Escola de Regentes Agrícolas de Santarém. Não sem antes, aos 12 anos, como ele refere num texto autobiográfico publicado no catálogo do ciclo do CCB, ter sentido, no meio do deserto de Moçâmedes, por alturas do Pico do Azevedo, «a comer pão e com um ataque de soluços», que «havia uma matriz geográfica» e que essa matriz era ali, subentende-se, e lhe dizia «muito intimamente respeito».
«De que havia uma razão de Angola que colidia com a razão de Portugal, disso dei definitivamente conta já a trabalhar nas matas do Uíge, quando em Março de 1961, eclodiu a sublevação nacionalista no norte de Angola», relata no mesmo texto em que dá conta da sua actividade pró-independentista e das dificuldades que teve para manter as ligações políticas aos nacionalistas, ao escapar por pouco de ser preso, estando na tropa. «Ligações políticas efectivas com a insurgência nacionalista, nunca mais encontrei maneira de as restabelecer».
Quando a independência de Angola chega em 1975, encontra-o a filmar, na noite de 10 para 11 de Novembro, no município do Prenda, «a bandeira portuguesa a ser arreada e a de Angola a ser hasteada». Nos anos anteriores andara pelo mundo «na pista da insurgência nacionalista», mas quando chegou a Argel para contactar «as forças da luta», ninguém o levou a sério. Vai trabalhar para Moçambique, mas acaba por tirar em Londres, com dinheiro emprestado, um curso de realização de cinema e televisão, regressando a Angola em 1974. Até 81, faz «pela vida e pela revolução», realizando filmes para a TV angolana e para o Instituto do Cinema de Angola. É quando deixa «de dar para querer continuar a fazer cinema» que se vira para a antropologia, primeiro vivendo com os pescadores de Luanda, mais tarde entre os pastores do seu mítico Namibe. Segue-se a docência, em Luanda, em Coimbra e em São Paulo.
«Ruy Duarte de Carvalho é um angolano por naturalização» - é a primeira frase sobre o escritor no texto que o apresenta no sítio da Internet do departamento cultural da embaixada de Angola em Portugal. Prémio Nacional de Literatura em 1988, Ruy Duarte de Carvalho «é um personagem polémico em Angola», segundo Dias Fernandes.
«Há alguma distância em relação a ele - que ele também cultiva de certa forma», afirma o curador português. Sendo «uma característica da própria personalidade, é também uma forma de manter a sua independência intelectual e política», acrescenta para sublinhar logo de seguida que Ruy Duarte de Carvalho foi «sem qualquer dúvida da parte de ninguém, um dos primeiros defensores da independência de Angola e sempre apoiando o MPLA», de quem sempre «esteve muito próximo» mas de que «nunca fez parte».
O reconhecimento oficial do Estado angolano da importância do escritor mostra que há «uma ambivalência nas relações», que na opinião de Fernandes Dias «é de parte a parte». «Da mesma maneira que há em relação a ele, [da parte] das elites angolanas, também há dele em relação a essas ditas elites e à sociedade angolana». «Faz parte do personagem complexo e da obra complexa de Ruy Duarte de Carvalho. E da complexidade de Angola».
O programa do ciclo O ciclo na capital angolana dedicado a Ruy Duarte de Carvalho compreende uma exposição, um conjunto de debates e uma conferência do próprio poeta/antropólogo/cineasta, segundo o curador do evento José António B. Dias Fernandes. A conferência, intitulada ‘Conquistas e Reconquistas - Luanda\', abriu segunda-feira o ciclo num restaurante da capital angolana, escolhido por ter uma perspectiva da cidade toda, segundo refere Dias Fernandes. A exposição, nas instalações do CCP/IC, foi inaugurada terça-feira, chamando-se ‘Essa maneira de convocar tudo\'. Foi organizada em moldes semelhantes à que ocorreu no CCB de Lisboa no âmbito do ciclo ‘Dei-me portanto a um exaustivo labor\', em Fevereiro de 2008. Na exposição, que ficará aberta ao público até 20 de Março, poder-se-ão ver, como aconteceu na exposição de Lisboa, todos os documentários de Ruy Duarte de Carvalho. O que os luandenses não poderão ver neste ciclo será filme de ficção Nelisita, bem como a peça de teatro que o ciclo de Lisboa apresentou, com base numa adaptação por Rui Guilherme Lopes da obra de Ruy Duarte de Carvalho Vou lá visitar pastores, encenada e interpretada por Manuel Wiborg. Diferentes também serão os participantes nos debates que terão lugar a hoje e amanhã no CCP/IC. O primeiro, intitulado Antropologia, História e Imagem, tem como intervenientes previstos Nuno Porto, Fernandes Dias, Ildeberto Madeira e Fernando Pacheco. O segundo debate será sobre ‘Literatura\' e nele participam os escritores Ondjaki e Ana Paula Tavares e as professoras universitárias Ana Maria Martinho e Manuela Ribeira Sanches. «Quis-se uma coisa em que participassem angolanos maioritariamente», explica Dias Fernandes, que tendo trabalhado aprofundadamente na exposição, foi o responsável pela escolha dos temas dos debates e encontrou as pessoas que neles participam. A sessão de encerramento terá lugar sexta-feira no ‘Espaço Verde Caxinde\', seguida de um jantar de homenagem a Ruy Duarte de Carvalho, e nela intervirão os escritores Pepetela e Jaques dos Santos e de Bito Pacheco, do Ministério da Cultura de Angola. À semelhança de Lisboa, é editada uma publicação com textos, que serão os mesmos do ciclo de Lisboa. A iniciativa da promoção do ciclo pertence ao Instituto Camões em Luanda, dirigido por João Pignateli. |