Ver a República pelo lado da literatura, mas constantemente cotejando esta com a dinâmica política e social, é a tónica do curso em linha que o Instituto Camões e a Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República lançam em Outubro.
«Focar a dinâmica do campo literário português entre 1880 e 1930», que é o período coberto, «alheado da dinâmica social e política não faria sentido num programa que está ligado na sua origem às comemorações do centenário da República», diz José Carlos Seabra Pereira, professor associado da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, que organiza e dirige o curso, intitulado ‘Meio século de literatura portuguesa: 1880-1930’, que se centra nos dois eixos que em seu entender dominam o período: «Refundação Pátria» e «Hora Europeia».
«Refundação Pátria», porque a ideia de uma segunda fundação do país congrega tanto monárquicos como republicanos e atravessa todo o período que vai das comemorações dos centenários de Luís de Camões e do Marquês de Pombal, no século XIX – que permitiram ao Partido Republicano, em particular com o tricentenário do poeta, «dar um salto qualitativo» –, até à afirmação do Estado Novo, explica o docente universitário. «Hora Europeia», porque ao longo de todo o curso também se foca «aquela ideia que domina o projecto do Antero de Quental e de boa parte da geração de 70, [a ideia] da decadência nacional», já não tanto como um fenómeno de declínio em relação à grandeza antiga, mas como atraso do país em relação à modernidade europeia. É uma linha que tem altos e baixos, mas que «vai regressando de vez em quando, muito declaradamente com o António Sérgio e com a Seara Nova», que retomam o tema contra o que o ensaísta designa como o ‘vício do instintivismo nacionalista’. «Esta é uma ‘hora europeia’ que vai esperar muito tempo…», diz o professor de Coimbra.
Jaime Cortesão. Foto Arquivo Municipal
de Lisboa/Arquivo Fotográfico
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E há por último, sobretudo após a Grande Guerra de 14-18, os sinais que vêm da Europa de que nascera um mundo diferente, com novas ideologias, novos costumes e novas tendências artísticas. É a época dos maximalismos, fascismo de um lado, bolchevismo do outro, «fenómenos absolutamente novos para o esquema mental de intelectuais do século XIX».
Mas qualquer que seja a «Hora Europeia», ao longo destes 50 anos «há um largo extracto cultural e literário, quer republicano quer monárquico» que suspeita que a Europa degrada o «espírito nacional» ou, à maneira dos românticos alemães, o volkgeist (o espírito da nacionalidade), um posicionamento que António Sérgio zurze, rotulando-o de ‘mentalidade teofilesca’.
Seabra Pereira sublinha que é «incontável» o número de livros e poemas com títulos como ‘alma nacional’, ‘alma portuguesa’ e outros do mesmo género. E os autores não são só monárquicos ou republicanos conservadores. «Aparecem também em republicanos que se consideram muito progressistas» e nos republicanos da Renascença Portuguesa, com o Leonardo Coimbra, Jaime Cortesão e Teixeira de Pascoaes. Antipositivistas, têm «consequentemente, um projecto de reconstrução cultural do país diferente do que têm os mentores do republicanismo jacobino».
Teófilo Braga com o Directóio do Partido Republicano.
Foto Arquivo Municipal de Lisboa/Arquivo Fotográfico
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Na sua abordagem, Seabra Pereira situa de alguma maneira a origem deste «desvio» no facto de o aproveitamento pelos republicanos dos centenários – que lançou a máquina de propaganda do Partido Republicano e levou a sua influência às classes altas – ter significado a sobreposição do «valor do nacionalismo», não só cultural como político, ao projecto crítico de Antero de Quental. «É a doutrina de Teófilo [Braga], que é uma espécie de mal-amado da geração de 70» e que tem aqui «o seu momento de vingança», considera o professor de Coimbra.Mesmo assim, «dois grandes vectores» ressaltam na literatura no período entre os centenários e o Estado Novo: «sentido da nacionalidade, sentido da cidadania». Na época, «para a maioria dos escritores de todas as facções, a experiência literária […] é ao mesmo tempo uma questão de cidadania e é uma questão de serviço da nacionalidade». Mas se para uns os valores da cidadania coincidem com os da nacionalidade, para outros chocam-se, refere o docente universitário. A literatura, sendo uma prática identitária, deve sublinhar os factores de identidade nacional e para alguns dos seus cultores «não pode portanto estar assim fragilizada por essas lutas de subversão social que podem fazer com que, como alguns escritores dizem, se tornem quase os ‘estrangeiros do interior’ ou ‘inimigos do interior’», explica Seabra Pereira
Sem apologias
O recurso à literatura para abordar o tema da República exige um certo número de cautelas, como dá a entender Seabra Pereira, autor de ‘Do Fim-de-século ao Modernismo’, que constitui o vol. VI da História da Literatura Portuguesa, publicado em 2002 pela Alfa. «Não posso estar a olhar a literatura como um reflexo instrumental dos fenómenos sociais e políticos», diz. São instâncias que têm a sua autonomia própria. «Seria uma visão redutora» e «mecânica», considera. «Mas também não posso rasurar as interferências, as interacções entre os fenómenos sociopolíticos e a dinâmica do campo literário», contrapõe.
Foto Arquivo Municipal de Lisboa/Arquivo Fotográfico |
Embora seja um curso «motivado pelo centenário da República», «isso não quer dizer que […] seja sobre a literatura apologética da República. Será sobre toda a dinâmica do campo literário português», avisa o doente de Coimbra. E esse campo é compósito e vai evoluindo, conforme regista Seabra Pereira. Nele cabem «movimentações que são umas contra toda e qualquer militância – há certas correntes no fim do século e depois no Modernismo que parecem defender de uma forma tão radical a autonomia da literatura que ela aparece como que divorciada dessa militância» – e outras intensamente militantes. Nalgumas fases, essa militância é mesmo «predominante» e «comprometida politicamente», mesmo quando anti-republicana. «Tudo isso aparecerá, quer essa literatura militante republicana quer a literatura contra-revolucionária», garante. Isto significa, no dizer do professor Seabra Pereira, que «o curso procura dar uma visão […] de quais foram as principais correntes estético-literárias, que configurações temáticas e formais foram dominando, em cada sub-período, como é que se foram sucedendo».
A ideia da «dinâmica de um campo literário» é nuclear nesta abordagem: «não se fala apenas das obras literárias em abstracto, mas dos escritores e dos grupos e também das estratégias, quer individuais quer colectivas, para se afirmarem naquela disputa de um determinado poder simbólico», refere. «Como é que se movem esses grupos? O que é que os motiva? Porque é que em determinada altura uns se tornam ascendentes e outros declinantes?», são questões a que o curso procura responder.
Outros aspectos, que Seabra Pereira cataloga como de «sociologia da literatura», serão igualmente focados: a extracção social dos escritores e dos grupos, os índices de leitura e os reflexos das alterações dos «costumes» na literatura, em particular após a I Guerra Mundial, sobretudo em Lisboa.
«Podemos hoje ficar pasmados ao saber que os escritores que nós consideramos de maior valor eram muito pouco editados ou muito pouco lidos naquele momento. E, pelo contrário, que escritores que hoje estão totalmente esquecidos eram autênticos best-sellers na altura», diz Seabra Pereira. Do ponto de vista da História Literária, estes autores foram na época claramente predominantes e representativos. Eram os mais editados, os mais bem acolhidos pela crítica e os mais lidos.
O professor universitário destaca ainda o «pequeno módulo» do curso que foca o surto de literatura de autoria feminina durante a República que, «de repente, se torna quase uma moda». «Nos jornais e nas revistas de grande circulação as mulheres [aparecem] a escrever por todo o lado», diz Seabra Pereira, adiantando que sobre esta literatura feminina há que esclarecer as orientações, os interesses e o tipo.
Supremacia conservadora
Nesta linha de elucidação de determinados problemas está também o tratamento da «literatura neo-romântica que explora e mitifica mesmo a figura de Nun’Álvares [Pereira]». Hoje em dia, podemos crer que era uma questão ligada ao imaginário literário, mas na época não era, diz Seabra Pereira. A figura do chefe militar do rei D. João I serve de tema, «maioritariamente, como seria de esperar», a escritores de nacionalismo monárquico e católico, mas o investigador regista que também, a certa altura, de autores republicanos e jacobinos, sobretudo quando da intervenção de Portugal na I Grande Guerra.
As interacções entre a dinâmica literária e a dinâmica política são aqui bem patentes. Seabra Pereira dá como exemplo o surgimento, entre o final da I Grande Guerra e o Estado Novo, da Cruzada Nun’Álvares, «que teve o seu peso na evolução política». «A determinada altura já não se sabe muito bem se é a literatura que está a reflectir a importância da Cruzada Nun’Álvares, se é essa organização que vai buscar esse nome porque antes disso já havia uma literatura que tinha mitificado e tinha, no fundo, colado um certo valor simbólico, de ordem também política, à figura de Nun’Álvares».
Com efeito, a Grande Guerra de 14-18, em que Portugal entra em 1916, inaugura a política da ‘União Sagrada’ no Governo e traz mudanças no campo literário. Seabra Pereira sublinha que um autor como João de Barros, ministro da República, maçon, escreve na altura um livro intitulado Oração à Pátria. «Não parece o mesmo autor que publicava no tempo da propaganda, nas primeiras décadas do século. Pelo contrário, não se diferencia muito daquilo que escrevem os poetas integralistas nessa altura. Porquê? Porque o discurso tem de ser o mesmo. Já não é só o que é chamado o nacionalismo republicano, mas é preciso ter outra vez um enaltecimento do ‘povo de heróis e de santos’, etc.»
Depois da Grande Guerra, vem o sidonismo, as revoltas monárquicas do Norte e de Monsanto (1919), o peso crescente do exército e a fragmentação do Partido Republicano. Ora, «quem convive com os jornais e as revistas dos anos a seguir à Guerra, sobretudo inícios dos anos 20 e por aí adiante, vê que o discurso do nacionalismo conservador, tradicionalista é claramente dominante», regista Seabra Pereira. «A emergência da Seara Nova, e ainda menos a do Diário de Lisboa, não consegue contrariar totalmente isso», afirma o investigador, que considera de qualquer forma que «o discurso ideológico, cultural e político da Seara Nova também não é o discurso tradicional do republicanismo português».
De tudo isto resulta a consideração paradoxal de que «a tal literatura exaltadamente emancipalista, republicana» está, «curiosamente», antes da implantação da República, em 1910. Vai de entre o Ultimato e o 31 de Janeiro e o regicídio, ou seja, de 1890-91 a 1908. Mas há dois outros sentidos para a «Hora Europeia» que são evocados no curso por Seabra Pereira. O primeiro é o sentido que lhe dão os modernistas, Fernando Pessoa e outros. A Europa simboliza aqui «o estádio até aí mais elevado de civilização e de cultura, que deve ser apropriado em Portugal através da arte, da realização artística e não tanto do combate político».
Encarte Camões no JL n.º 143
Suplemento da edição n.º 1017, de 23 de setembro a 6 de outubro de 2009, do JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias