L´homme d\'hier no Théâtre de la Bastille em Paris
Não é um espectáculo fácil de descodificar. Não se enquadra nos paradigmas a que estamos habituados. O dispositivo cénico é espartano e parece que vamos assistir a uma sessão de powerpoint - em palco, uma secretária, atrás da qual se senta o único actor, com um computador em cima e, por detrás, um ecrã onde são projectadas imagens.
Número 132 · 19 de Novembro de 2008 · Suplemento do JL n.º 995, ano XXVIII
A história também não é linear. Misturam-se várias cidades que são uma só. Misturam-se vários planos temporais e a personagem é uma e várias (cinco ao todo) ao mesmo tempo, sendo que as várias personagens são ainda ela em diferentes momentos que se cruzam no mesmo lugar, repegando nas Heteronomias de Jorge Luis Borges, à volta da ideia de encontrar um outro que é ele próprio. Para mais, actor (também autor) e personagem são um e o mesmo - Tiago Rodrigues -, levando mais longe a anulação do distanciamento brechtiano.
«Este espectáculo parte da hipótese de que em cada cidade existe uma outra cidade subterrânea e por baixo dessa existe ainda uma outra cidade e assim sucessivamente, num infinito de cidades escondidas que o tempo vai revelando de forma imprevisível. Essas cidades subterrâneas são tanto o passado como o futuro, são tudo o que já não ou ainda não existe no presente», diz a sinopse da peça.
Nada melhor do que Beirute - uma cidade constantemente retrabalhada na sua malha urbana pelas vicissitudes da história, que faz com que «cada bairro seja uma cidade diferente, com os seus espaços e culturas distintas» - para servir de cenário a esta narrativa intitulada L\'Homme d\'hier (Yesterday\'s Man/O Homem de Ontem, na versão original que foi apresentada em Maio deste ano no Alkantara Festival, em Lisboa).
Escrita a seis mãos por um português e dois libaneses, vai agora ser apresentada em francês, com o apoio do Instituto Camões, ao público parisiense do Théâtre de la Bastille, entre 1 e 7 de Dezembro, após ter passado nos últimos meses por Girona, Marselha, Cagliari (Sardenha), Liubliana, Rio de Janeiro, Bruxelas e Faro, estando previsto depois que siga para Glasgow, Genebra e faça uma digressão por França.
O Théâtre de la Bastille é um espaço independente existente na sua actual forma desde 1989 e que se reivindica de ser um dos mais internacionais de Paris, onde «o imprevisto, o inabitual, o improvável encontraram a sua câmara de eco e o seu público mais fervoroso».
Tiago Rodrigues, o português, e Rabih Mroué e Tony Shakar, os libaneses, são os autores de um espectáculo que resultou de uma encomenda de Mark de Putter, o director do Alkantara, que propôs ao primeiro que trabalhasse com o segundo, à volta da ideia de cidade mediterrânica, no âmbito do projecto Sítios Imaginários. Uma proposta de trabalho comum que resultava das afinidades quanto a um «certo pensamento político no teatro» de que Mark de Putter se apercebia nos projectos de ambos.
O contacto, com visitas recíprocas a Beirute e Lisboa, confirmou essas afinidades, relata Tiago Rodrigues. «Temos interesses comuns e um processo de trabalho similar», frisa o jovem dramaturgo e actor português. Mas não foram só as afinidades que facilitaram o processo de construção de um espectáculo. Também houve complementaridade. O trabalho de Rabih Mroué «repousa muito sobre a cidade de Beirute e eu, pelo contrário, estou habituado a atravessar fronteiras. Estou mais ligado à ideia de sair de um espaço e ele está mais ligado a trabalhar num espaço».
A junção do artista visual e arquitecto Tony Shakar à dupla resultou da necessidade de dotar o espectáculo de um «discurso poético», porque o trabalho de Rabih Mroué, como reconhece Tiago Rodrigues, «evoca as realidades políticas à maneira de um documentário».
«É uma ficção mas não é uma falsificação. Quando ficamos um mês, como eu estive, completamente perdido numa cidade, pode-se encontrar a sua própria identidade e desmultiplicar-se», diz Tiago Rodrigues.