310 anos de relógios

Exposição Tempo sob Medida no Rio de Janeiro

Os relógios prestam-se a divagações repetitivas sobre o tempo e a sua falta. Mas, na realidade, o tempo psicológico, filosófico ou relativo é aqui o que menos interessa. O importante são os relógios, de várias épocas e em todos os formatos e tamanhos: de pé, de parede, de mesa ou de bolso. Mecânicos, de areia ou de sol. Muitos serão menos prosaicos medidores de tempo do que peças de mobiliário ou de joalharia, sinais exteriores do estado do seu feliz proprietário de outrora.

Número 129   ·   27 de Agosto de 2008   ·   Suplemento do JL n.º 989, ano XXVIII

Tempo sob Medida
Relógio de mesa, despertador "Pólvora" c. 1720-30. Londres, Godfrie Poy (1718-1750). Prata, bronze dourado, aço, ferro e vidro. O despertador funciona com um sistema de pederneira que ao disparar o tiro, acciona a tampa da caixa que se abre, levantando-se uma vela que seria acesa pelas faíscas provocadas pela fricção da pólvora. Foto: Paulo Anunciação

Na mostra de 60 relógios da colecção da Fundação Medeiros e Almeida que está agora em exposição no Rio de Janeiro até 14 de Setembro, no pólo carioca Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB), no âmbito das comemorações dos 200 anos da chegada da Família Real portuguesa ao Brasil, só faltam mesmo os aparelhos de pulso e digitais. O que se compreende. Embora falemos em fabricantes é de indústria artesanal, próxima da arte, que se trata. O «relógio» mais antigo apresentado é um conjunto de três ampulhetas com mecanismos, montadas sobre um tinteiro de mesa, c. 1625, feito em Gdansk por Michael Schedelock, e que data o início da transição para os relógios mecânicos. O mais recente é o chamado relógio misterioso, de fabrico austríaco, c. 1935.

São 310 anos de relógios oriundos de uma colecção que se caracteriza «pela abrangente representatividade na evolução desses instrumentos de medida do tempo na Europa, tanto no aspecto técnico como estético e também como testemunhos da relojoaria na evolução da história das mentalidades», segundo Teresa de Seabra Cancela Vilaça, directora da Casa-Museu Medeiros e Almeida.

Tempo sob Medida
Relógio de Carruagem. c. 1810, Paris, Abraham-Louis Breguet (1747-1823). Prata, esmalte, aço, e vidro. O relógio encomendado por Carolina Bonaparte, irmã de Napoleão e Rainha da Sicília. Foto Paulo Anunciação

Os principais fabricantes daquele período histórico - como Abraham-Louis Breguet, Godfrie Poy, Thomas Tompion («o Rolls-Royce da relojoaria», no dizer do curador, o artista plástico brasileiro Luiz Dolino) - estão representados na colecção de 700 relógios e outros aparelhos de medição do tempo reunida por António Medeiros e Almeida, entre 1940 e 1985, parte dos quais está regularmente exposta na sede da fundação, um palacete no centro de Lisboa, que acolhe também todo o vasto espólio de obras de arte, louças, mobiliário e pratas constituído pelo industrial português durante um largo período no século passado.

«António de Medeiros e Almeida (Lisboa, Setembro de 1895 - 1986) foi um dos homens de negócios portugueses mais bem sucedidos do século XX, para além de um dos maiores mecenas de arte que Portugal já conheceu, sendo superado apenas por Calouste Gulbenkian», escreve a Wikipedia a respeito do homem para quem a colecção de relógios se tornou uma paixão que manteve praticamente até à sua morte.

A exposição, que contou com o apoio do Instituto Camões, tem como curador Luiz Geraldo Dolino, um antigo funcionário do Banco do Brasil, como especialista em comércio externo, e que assessorou nessa qualidade o Ministério da Indústria e Comércio do governo de Itamar Franco.

 

Peças raras

Tempo sob Medida
Relógio de mesa, c. 1775. Lisboa, Fábrica Real (uma das fábricas do complexo fabril do Rato criado pelo Marquês de Pombal em 1759). Latão, aço e ferro. Exemplar raro. Foto Paulo Anunciação

Segundo conta Dolino no catálogo da exposição, dele foi a ideia da mostra - a que deu o nome de Tempo sob Medida «ainda antes de traçar as linhas mestras do que viria a ser convertido numa proposta» -, depois de ter montado em Lisboa uma exposição sobre pintura geométrica promovida pela embaixada do Brasil, que teve como palco precisamente a Fundação Medeiros e Almeida, e de, regressado ao Brasil, se ter ocupado da montagem de uma exposição sobre artes gráficas para o Banco do Brasil.

«Juntei pontas óbvias. O Banco do Brasil, então, estava perto de celebrar o segundo centenário da sua fundação. O Rio de Janeiro se preparava para comemorar a chegada da Família Real portuguesa. A Fundação Medeiros e Almeida tinha um acervo fabuloso para marcar esses 200 anos».

Assim sendo, na mostra patente no CCBB figuram peças ligadas a personalidades ligadas aos eventos da época, como o relógio de carruagem vendido em 1810 por Breguet à irmã do imperador francês Napoleão Bonarparte, Carolina Bonaparte, rainha de Nápoles. Ou um relógio inglês de caixa alta, de John Monkhouse, semelhante a um outro que existia no Palácio de Queluz, quando o príncipe D. João decidiu «passar a corte aos Estados da América». A faltar no Rio de Janeiro ficou o relógio de bolso, também do fabrico de Breguet, que o general Junot comprou em Agosto de 1807, três meses antes de ocupar Lisboa, conforme relata no catálogo a directora da Casa-Museu Medeiros e Almeida.

Tempo sob Medida
Ampulheta, c. 1625. Dantzig, Michael Schedelock. Âmbar, marfim, ébano, vidro, aço e areia. Foto Paulo Cintra

Uma das peças mais interessantes e raras da exposição, embora não muito espectacular no seu aspecto, é o relógio (c. 1775) da Fábrica Real que brevemente existiu em Portugal no complexo de instalações industriais mandadas erguer pelo Marquês de Pombal em anexo à Real Fábrica das Sedas do Rato. Além de fugaz, a fábrica também teve produção exígua. O relógio foi adquirido por António Medeiros e Almeida em leilão na Leiria e Nascimento, em 16 de Novembro de 1946, por 8.500$00, uma pequena fortuna à época! As peças patentes no Rio de Janeiro estão avaliadas em aproximadamente 9,5 milhões de euros.

De acordo com Dolino, a receptividade do público brasileiro tem sido positiva: «A exposição é muito original, é um assunto totalmente novo». Espera-se que seja visitada por 130 mil pessoas.

O mecanismo expositivo montado no Rio de Janeiro para a primeira saída ao estrangeiro de uma mostra da colecção de relógios contemplou também a reprodução de toda uma sala do palacete da Fundação Medeiros e Almeida com o seu espólio original de móveis de estilo, quadros, jarros, tapetes, porcelanas, cristais e pratarias. O curador pretendeu «mostrar como as pessoas conviviam com os relógios», embora o ambiente criado na sede da Fundação não seja propriamente a de uma residência habitada no quotidiano. O que só reforça a convicção de que o palacete situado no cruzamento das ruas Mouzinho da Silveira e Rosa Araúdo, em Lisboa, merece bem uma visita.